quinta-feira, outubro 29, 2009

Prosa poética


O acrónimo que forma a expressão "fuck you", assinado por Arnold Schwarzenegger, governador do estado da Califórnia, está a criar um pequeno celeuma na opinião pública americana. Disparates em tempos de crise. Enfim, cada um a prosa poética que merece...

domingo, outubro 25, 2009

PARTIDA

Aos amigos do Jornal A Nação




ESCRITA boa era a do jornalista Manuel Delgado. Punha o País em polvorosa. Metade da tripulação queria-o pela borda fora. Outra metade, onde me situava, gramava tê-lo como companheiro da navegação. Quem sabe até da vagueação. Delgado levava chamas dentro do corpo para o incêndio da 25ª hora. E o resto, sendo ninguém a claridade, ajaezava-se à andaluza; e o resto era eu, dizia, a declamar os versos de Mário Sá Carneiro…

PROTELOU-SE a ida à feira gastronómica de Santarém. O melhor da culinária crioula? Há coisas giríssimas. De fazer pecar qualquer cristão. Dos carapaus fritos e arroz de feijão, não falarei. Sou suspeito. A canja de galinha, a mão de vaca e a sopa de Rolão. E o meu lado pantagruélico, ao molho pardo, papava sem dó, nem piedade a loura que desdém da culinária cabo-verdiana. Esta saiu-me. Mas prometi escrever ao sabor do vento. Aos zéfiros…

PREMONITÓRIO livro, não se sabe se de bom ou de mau costado: Carlos Veiga – o rosto da democracia. Seu apresentador Abraão Vicente (que, por duas vezes, já o foi dos meus livros) tem razão: há que ler para se ajuizar. Não sei sobre a qualidade do livro, ainda por ler. Mais rica a bibliografia cabo-verdiana terá ficado, isso sim. Tal biografia política introduzirá outras portas para o catálogo bibliográfico nacional, igualmente por elaborar. Se de bom ou de mau costado, só o tempo dirá. Precisamos de portas necessárias para novos tempos…

PODEREI expressar-me, mais a gosto, nos meus poemas. Ou, então, no contragosto, a minha prosa, pois que o romance está feito. É brinquedo deste tempo. Crónicas, fi-las para marcar o tempo. Ou tais tempos. Mais que tempos, já que também para testemunhar lugares. Cronistas de viagens, sê-lo-emos afinal. Descobrir, de repente, a ilha dos amores e estender-se ali no vagar das horas que nos restam. Mas isto é assim: um indivíduo passa-se, qual Ulisses entre as deusas, e quer navegar pelo mar infindo. Como mesmo era aquilo? Navegar é preciso, viver não é preciso…

PRONTO, assim à parva, fecho agora o ciclo do Entre-Nós. Estar-se gagá diante da larva é o grande segredo, já que não sei levitar, nem ficar em nirvana. Ademais, não nasci para faquir. Burro velho já não aprende sobre certos segredos ao estilo desenxabido. Escrita boa era a do jornalista Manuel Delgado. Era mesmo a doer. Agora nós: Oi, partida abo é um dor profundu. Aplaudam lá a esforçada piada deste cronista a partir...

sábado, outubro 24, 2009

O iluminado...sara_mago



(...) Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama. (...)



Extracto do romance Caim, de José Saramago

sexta-feira, outubro 23, 2009

A luz dessa cidade




Salvador

De há muito que a minha alma entrara na cidade de Salvador. Por razões várias. E por interpostos conhecidos de outros carnavais. Mas agora ela entrou na minha alma. Sinto-me vencido e invadido.Verdadeiro amor. E sem qualquer outra racionalidade, a cor dessa cidade sou eu. Para mim é quase uma questão de nacionalidade. Mais de mátria que pátria. De Humanidade. Entranhado de tudo (do sagrado ao profano), abraço o arco da Bahia todos os que aqui estiveram antes de mim nesse recôncavo. No Rio Vermelho, de boêmias noites, estarei sempre como um “Man in the mirror”...



Genivaldo taxista

Em qualquer cidade, adoro meter conversa com taxistas. Os barómetros sociais da urbe são os taxistas, os barbeiros e os esmoleiros. O pulsar da realidade dado por estes é muito mais fiável que as sondagens e as estatísticas, estas quase sempre inquinadas e de neutralidade duvidosa. Em Salvador, tive o prazer de conhecer Genivaldo, jovem na praça, mas lúcido sobre a pornografia política e sobre a guerra social em curso. Enquanto percorríamos a orla marítima, com a ilha de Itaparica ao fundo e as histórias de João Ubaldo Ribeiro ali escondidas, Genivaldo ia contando os casos, cada um mais escabroso que o outro. Do traficante transferido para uma penitenciária federal e que, por isso, instaurou estado de sítio na cidade. Das bocas de fumo, do lixo e da prostituição. Do turismo sexual e da pedofilia com conexão internacional. Da genitália pervertida e vendida ali na avenida. Sendo depois disso o oceano, o vasto mundo. O esquecimento...


Violência polícial


Entre os vários problemas sérios que a cidade de Salvador apresenta o convívio (cada vez mais impossível) entre a extrema pobreza e a extrema riqueza é o maior de todos. A desigualdade elevada ao absurdo. E dela decorrente, a violência social. O pessoal da favela, no afã da sobrevivência, invade a cidade a toda a hora. Não há trégua. O tráfico de droga recria o novo proletariado urbano e o transeunte é apanhado, em plena rua, em troca de bala. Tresanda a sândalo e maconha pelos becos. E salta à vista uma pobreza de embaraçar os deuses. Aqui, a desigualdade confunde-se com a raça. E não se sabe se a Polícia Militar anda a dizimar o pobre ou o negro. Se a matar afinal o negro pobre, o que é circunstância tão plasmada que confunde o genocida. Pois, como diria Caetano Veloso: o Haiti é aqui...

Ana do Pós Doutoramento


Estava ela ali defronte. Do outro lado da mesa. Linda, como uma gazela surgida da neblina. Sugeriu para o nosso almoço uma sopa de caruru e uma moqueca de siri. Menu afrodisíaco, conforme o garçon meio atrevido. Mas o almoço era para falarmos da Guiné-Bissau, terra de Ana, estudante largada ali na terra de todos os santos e de todos os pecados para um Pós Doutoramento. Ana anda assustada, assustadíssima, com a Guiné-Bissau. Esquartejar o Presidente da República, onde já se viu? O garçon agora preocupado, entrara na conversa: os santos precisam abençoar esse país. E os homens devem abraçá-lo de novo, balbuciei para os ouvidos inaudíveis de Ana, posto que da mesa vizinha o pessoal cantava em coro “O canto dessa cidade é meu”. A sobremesa: Quindim de Iaiá. Apesar de balançado diante do pudim de tapioca que Ana comia ali defronte...

Estas linhas vão para Manuel Rui, pela cumplicidade não dita mas pressentida agora com “Janela de Sónia” e para Ondjaki, pela cumplicidade dita e assumida, e já agora para Odete da Costa Semedo, pelas cantigas de Mandjuandadi. Oratura boa a da nossa mesa no XXII Congresso da ABRAPLIL, na UFBA, em Salvador da Bahia. O canto dessa cidade é meu...










quinta-feira, outubro 22, 2009

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpor
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
ntre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Helder

Nada que suscite estranheza




ISTO, meus senhores, era Eduardo Agualusa: Nunca senti a necessidade absoluta de escrever – como de comer ou de fazer amor. Em verdade, escrever, sendo prazer enorme, não se configura urgente. Nem mesmo uma angústia como se imagina o cigarro para o fumador.


MÁRIO, meu poeta, agora dissecado por analistas, autopsiado por aqueles que, em vida, te achavam irrealista e ingénuo, poeta demais para seres verdade. Agora à mercê do augúrio da política e do tugúrio do café, sorri de onde estejas e ensaia dali a tua sonora gargalhada…


CONFRADES e companheiros, assim falavam os deuses descalços, para a irreversível afirmação da nossa geração literária. Para além de detonar o sistema autoritário vigente, o que nos interessava era fazer literatura conseguida. Sabíamos, de essência e de bandeira, o que nos movia. Mas não nos comprazia o regimento…


PETRÓLEO! - Propala-se por aí. A falácia do “Yes, Petróleo” não me aquece, nem me arrefece. Nos países onde jorra petróleo, sobretudo os da nossa martirizada África, aos povos ninguém lhes gaba a sorte. O dinheiro do petróleo ainda não chegou aos pobres, que eu saiba. É claro que há o exemplo da Noruega. E o indício do Brasil com a pré sal. Mas, são dessas coisas, gente fina é outra loiça…


APETECE-ME dizer este disparate: a identidade está nas escolhas que fazemos. Nas estradas que percorremos. Ela não se confina à nacionalidade, mas aos mundos que vamos construindo. Apetece-me dizer que sou cidadão do Mundo e que meu único endereço fixo é o e-mail. Ei-lo: filintos@gmail.com


QUE te diga mais um disparate? Fosse eu político, estaria disposto a perder eleições. Recentemente, acompanhei de perto um político, por sinal amigo, a perder uma eleição. Vi-o a humanizar-se lentamente, depois disso. A ganhar poesia. E a ser um homem livre. Senti-o subitamente a ganhá-las – não as eleições, outros quinhentos, mas a felicidade. Essa coisa difícil de se descrever.


FIQUEMOS por aqui, não sendo a escrita cigarro para o fumador. Esta é das minhas últimas crónicas para o jornal. Apegado que estou aos meus versos, contos, outros escritos, mal tenho tempo (e serventia) para
escritas mais práticas e semanais. Não farei falta. Se o fizesse, seria de outra maneira. E ai do leitor que sentir saudades. Tais pieguices, como a morabeza, fazem parte da mentira nacional.