segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Ouvindo sublime música, lendo Stanley Bing ou Geeeeeente, isto não está fácil

“Alguma coisa está fora da ordem



Fora da nova ordem mundial…”



Caetano Veloso






(Horace Silver em “Jazz Has a Sense of Humor”. Quem são estes novos avatares, nós quem sabe, acabrunhados diante de um bebé a nascer, mas que nos rimos da ira dos deuses e dos imperadores, não fossem Roma e todas as multinacionais até hoje lérias e pilhérias podres poderes sob as estrelas? Quem são estes bastardos, senão nós pela certa, filhos de um tal Zodíaco que permitiu homens às feras para que portentoso fosse o Panteão e tão estrondoso o ruir das Torres Gémeas quão espalhafatoso o vir abaixo do Muro de Berlim? Quem são estes malucos de repente, sombras de nós em Nero e Calígula, emocionados ao desabrochar das flores e com síndromes de Peter à espera do assassino serial que por aí anda?)






Da Roma, S.A.

Patrícios, tribunos, vassalos ou raios que os partam, tudo o que Roma afinal determina, Césares ou sacerdotes, ânforas cheias de nada, pois que o absinto é fugaz tal qual o incenso das mortalhas e o perfume das vestais virgens – dizia-vos, meus amigos, nada paga a barriga de atum e o queijo fresco das ilhas no português da Achada de Santo António, e olhem que os persas vão, enfim, enriquecer o urânio e os turistas sentaram-se, com pompa e circunstância, na mesa ao lado. Rómulo e Remo, ambos obnóxios para a vida e para a morte, firmaram tal irmandade nas margens do rio Tibre. O resto (Bill Gates, Steve Jobs e os demais da Revista Fortune) sendo um grande Carnaval (estendal de folia contra esta fobia) e que nos acontece ao Haiti é uma grande pornografia…



Da também Praia, S.A.

Há também a Cidade, S.A., uma coisa disforme e viscosa. Um Maquiavel pensando de raiz e disfarçando aqui de morabeza traçava-lhe o PDM numa dúzia de diagonais. Esta Cidade, S.A. precisa assumir-se: metropolitana. Sonhemo-la com causa e consequência. Contra a ordem que nos impõem os hunos, os vândalos, os ostrogodos, os visigodos e os godos todos. Antes que venha o diabo tecê-las. Isso com desconto pela concupiscência das suas canções de puras e dengosas almas. Tão da pedra quão da fina, dir-se-ia que lhe refila a matéria vida. Os “thugs” que lhe surpreendem os pequeníssimos burgueses surgem dos “ghettos” e transformam-se em questão de segurança nacional. É o que está a dar. Mas também pornográficos esses bairros à mercê da sorte ingrata. Água da palavra escusa. Lágrima de pantanosa tinta, retinta ausência de saneamento, suas pálpebras de lixo jorrando rímel. Com BAC, BIC, SIR, PJ e quejandos, convenhamos, alguma coisa está fora da ordem. Qual o investimento per capita nesta cidade? Escola, escola, escola. Da ciência, da arte e da cidadania. Emprego, habitação, saneamento, luz e água, sendo de viés certos estudos, é disso que a juventude precisa para não implodir a catedral dos ditos doutos.



Nayé

De repente tudo se enfarpela: navio. A viagem entrevada, de mar rodeado, da quilha à proa. Ser ilha (ó toada) de barco à vela. Náufrago, sendo nauta. Acto primeiro em nuvem, depois ar e, ora, paragem, alma desacata tendo a morte em seu afago. Noite de Sevilha ou de Lisboa, dançando Easy Skankin’. Em meridiano de Tordesilhas coube-nos também a ilha de Gorée. Acto segundo em Google Buzz, alfabetizar-se já em inclusão digital. Equinócio ao meio-dia em que o açoute, melodia de Malinké, trespassava pelas terras do Mali. Nayé, em teu altar de celebrar tudo que se revela, curto pavio o meu e está ele cheio de fogo…



Átila e seu dilema

Não é que também não me distraiam os demagogos. As maravilhosas aventuras dos filhos da pátria são de rir até mais não. Mas isto terá de ser para além do pão e circo. Além das crucificações e das feras. E muito menos de Nero incendiar a cidade eterna. Tempo para “Love and Broken Heart”, de Wynton Marsalis. Para mim a grande questão era aquela colocada a Átila, entretanto em Roma. Como é que se pode voltar para as estepes depois de ver o Fórum? Geeeeeeente…isto não está fácil!





(Agora, Manu Dibango toca “Douala Seranate”. De todos os males causados a Cartago, isso de queimar seus campos de cereal com sal e parafina, radiação atómica sobre a Sérvia e o Iraque, é selvajaria elevada ao infinito. O sonar de um submarino atómico entre o abissais caminhos cabo-verdianos, desorientando as orcas, as baleias, os cachalotes e os golfinhos. Os olhos do cronista precisam ficar pelos ajustes, pelas miudezas que vão pontuando o quotidiano. Somos sempre sós e mesmo quando a sós nessa candelária. No cais de não partir nos esquecemos que nenhuma claridade tem a candeia de cada um de nós. Todavia, os meus olhos de “luna llena” vejo a tua intensa luz. Hoje, Nayé, estamos iluminados pela escuridão da Electra. E, se isto é loucura, nada melhor que um banho de chuva. Vem à chuva ou na cachoeira, vem coreografar a dança de Shiva…)



quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Do Valentino: dizes tu que me sublimas

(Bem, o leitor não precisa do Google Earth, do Serviço de Informação da República ou do mexerico da vizinha para me localizar na esplanada do Café Sofia. Estou aqui sentado diante uma Superbock estupidamente e de uns rissóis de carne, felizmente com a Internet Hi-Fi. Mais triste. Triste de não ter jeito. É justamente aqui que te encontro. Minha deusa mental. Virtual musa. Pois namorar também se pode pelo MSN, pelo Google Buzz e pela telepatia. Ou, então, nem isso. Um cristão pode tão-somente ficar aqui a pastar o nada. Tu dirás, velho tarado, ser colírio para os olhos ver a bunda a passar)



Há longos anos

Em Belo Horizonte, tempos idos de estudante, eu te oferecera um livro de crónicas de Carlos Drummond de Andrade. Fi-lo como se te oferecesse uma Bíblia do amor. Ou, simplesmente, te permitisse espreitar, pela silenciosa fechadura do gozo, o tratado do Kama Sutra. Lembro-me de o livro gritar no frontispício, sendo título que se via, “Boca de Luar”, e remetendo para uma crónica homónima em que o jovem casal briga por uma questão semântica até que Drummond de Andrade, pela prerrogativa do Criador, faz que as duas criaturas terminassem esse texto em beijo. Eu te oferecera tal livro e, caldeado pelo afã da juventude, te escrevera na primeira página interior: “O amor é o combustível que move as nossas vidas”. Coisa do bem, isto de amar…


De couro forrado

Ora, p…já ia dizendo um palavrão. Mas, mercê da minha veneranda admiração pelo verbo, apenas digo ora essa. Ademais, a paz, que também passa pela pacificação verbal, com perdão pela redundância, me impõe certos limites. Indignado, deito a mão à frase de um cronista amigo: “Vós me chutais para lá e para cá, se devo continuar neste serviço, deveis me forrar de couro!”. Estou farto disto. Mas que falta de mistério. Que lençol de lona disfarçado de cetim. Quanta máscara pirosa neste Carnaval. Folia de assaz estirpe, dispenso. Esta lerda me cansa. Porque não Arts and Crafts Movement? Quero que me mates no altar de Vénus. Quero o teu doce, porém mortal veneno. Ou, então, tu que, por vezes me sublimas, diz qual o bálsamo para não morrer de tédio.


Carne assada

Enquanto eu comia, contra toda a recomendação médica, uma carne assada na berma da estrada, tu me fizeste, de chofre, a grande pergunta. Mulherio tem disso. Se tenho ou não namorada? Em verdade, não pude responder à tua pergunta um tanto à queima-roupa, mas ainda assim ensaiei um mais ou menos. Repetiste que tenho sido vezeiro em falar sem dizer nada. Concordei: falar é um dever, mas dizer já é um direito. Não que o teu insinuante olhar me seja indiferente. Nem que eu desvie os olhos quando, pelo fim da tarde, tens os cabelos molhados. Gosto, sim, de mulher com ar chuvoso. Não te sei explicar como é, mas a roupa ensopada ao corpo é quase um pecado original. Ou, pelo menos, um grande pecado. Não me refiro à carne assada. Se o meu médico me visse agora. É cada uma…



(Se não queres ir para a Pasárgada, fica. No bestiário, alguém grita viva ao talento individual e abaixo à mediocridade colectiva. Era lícito escrever sobre amores pretéritos. Sobre o paroquial Dia de São Valentim. Inventar prosa vaporosa, com papel de lustro e urso de pelúcia. Dava até para transferir o post deixado no teu Facebook. Olha que na Pasárgada o pórtico é enfeitado de corações e afeitado de flechas de Cupido. Assim, no tipo art déco. Mando chamar a mãe-d'água, como diria Manuel Bandeira. Só para me contar as histórias. E, quem sabe a banda da bunda também ande por ali?)

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Silêncio de sol-posto

(Olho longamente o teu rosto. As tuas cicatrizes. Sulcos. Manchas. Outras marcas. Quem sabe, marcos. Momentos. Todo o imposto pelo tempo. Raro o que nele fica como solfejo de belo poema. Tatuagem. Sê-lo é tão avaro que, olhado a milímetro e à lupa, cada poro é verso. Seu reverso também é poema. Olho longamente o teu rosto. E suas aliterações de “t” e assonâncias de “o”, por modo que nele também veja o que Fernando Pessoa descreveria de “silêncio em descida”e eu aqui me atreva que é silêncio de sol posto)







Tremeluz dentro de mim

Sendo tudo treva ou luz absoluta, passa-se o mesmo comigo de me olhar ao espelho e chorar-te muito. Tremeluz dentro de mim uma angústia que tu não sabes. Seja assim o transcrito e eu não me resigno. Que me induza à flor cortada ao meio o dentro de ti. Veja eu tua refinada cor, que sabe à fruta e lembra à gruta. Perscrute, também eu em teu encalço, ao caleidoscópio dos fontenários, das beiras de lago, dos mergulhos no mar e dos banhos de chuva. Troveja, afano do sagrado, o tal anjo cheio de quimeras e das vaporosas montanhas, de tão pródiga natura, entre minerais, entremeadas e searas, os inertes se molham de água. É uma forma de lágrima, pelo que depreendo.



O engodo dos espelhos

Receias envelhecer a olhos desta cidade. Pintas o cabelo de azeviche, amanheces-me de cara mascarada, como um clown, duas rodelas de pepino nos olhos. Demoras ao espelho para que te engane a eternidade. Mas o que se reflecte nos vidros é puro engodo. É a outra dimensão do erro – labirinto e absinto. Aquietar-te que a idade que se entardece, tal como diria Eugénio Tavares em “Bidjiça”, tem o gosto do amor “no devagarinho”. Estirado no lajedo o teu corpo. Releio-te jeunesse adieu jasmin du temps/j’ai respire ton frais parfum, poema de Guillaume Apollinaire. Lá longe, mas perto de onde se alisa o horizonte, um barco leva seus caminhos de proa. E o espírito teu, o que se abstrai desse casulo material, onde é que fica? Leve, desafiando quase a gravidade, uma penugem flutua. Sê-lo-á por acaso? Vagarosamente. Eis o teu rosto para que eu te olhe longamente.


(Olho longamente o teu rosto, insisto. E eu apenas tardo nos decotes que arfam os seios desta noite. Quem te dirá, senão ninguém, quanto demora a minha viagem? Tão pouco saberás de alguém se, para além da nuvem e sua vadiagem, vem de mim este ficar o tempo que tudo se torna cadente estrela nesse céu. De zodíaco nada sei e de cartomante sou um zero à esquerda. Pudesse lançar os búzios sobre os panos coloridos ou jogar os dados sobre a neurasténica mesa do bar. Ia jurar que esse cão de penetrante olhar fora alguém conhecido, ora emigrado na eternidade. Depois de três ou quatro copos, o teu rosto aqui se liquefaz)

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Do teu pesar feito cruz

Em jeito assim de um pequeno memorando
(posto aditado à crónica precedente)

a)
Vou logo, como que esfomeado, aos meus discos. À secção dos brasileiros, mais precisamente à discografia de Chico Buarque. E imagino-te a sussurar aos meus ouvidos, ó deusa saciada, Tatuagem

(...)
Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem...
(...)
 
b)
Às vezes, penso cantares, sereia que também seduziste a Ulisses, para que eu me acorrente ao mastro e, desvairado, tape os ouvidos com cera. Outras vezes, creio tuas artimanhas de musa serem tudo que o Poeta precisa para que, de tanta antinomia, seja sua vida melodia;
 
c)
E, por certo me predizes agnóstico,  rendido embora ao paradoxo de Afrodite e quem sou eu para distrinçar a nuvem do Juno ou mesmo, por empirismo que seja, o trigo do joio (?). Palavra que eu quis, como pão à boca, levar-te pelas mãos na linda praia que se recorta a desoras até ao Farol da Barra. Mas, esquecidos entre a peça hilariante e a moqueca de siri, o que se reporta foram olhares trocados de promessa e de vagalume.
 
NOTA:
O amor está bem à mão de semear. E o corpo é terra boa e ainda por riba molhada de tanta chuva. Pelo que Vossa Senhoria descei do pedestal e vinde, com a humildade da entrega, para o estendal do querer. Sendo o resto, refrega...sinecura! Ou venha à noite, o ringtone dessa música...

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Liberté, Egalité e Fraternité

(Eis que levava à burra, de tão andaluza, Sancho Pança e Alonjo Quijano, mas este de alazão portentoso, respectivamente um a ver moinhos pelo significante, outro a vê-los pelo significado, a um tempo em que Cervantes grafava seu texto entre o glosar da emergente burguesia e o rir da nobreza decadente. Mas o que fede por cá e neste tempo, para além do cano arrebentado no condomínio onde atendo em 2º Dto Frente, é faltarem tomates aos cronistas desta urbe. Aos cépticos e incrédulos, leiam os panfletos de Pedro Cardoso e de Eugénio Tavares. Estes de hoje, mesmo quando blogueiros, são subprodutos e outros afagos)





Hermínia Silva

Tinha um timbre diferente. Entre o dissonante e o estridente. E eu, dissidente das sonoridades cartesianas e dos acordes previsíveis, gostava genuinamente de a ouvir cantar. Destoante até do acompanhamento que, quase sempre, solava pelas primas e fazia o baixo pelos bordões, ora em mi maior, ora em mi menor, e raramente em sustenido. E ela, como se aquilo fosse tudo tão diáfano, voava pela rama numa morna, tanta vez estranha, ou numa modinha que, pelo espavento, era endeusante viçarada. Gostava dela também pela homonímia. Tinha o nome da minha mãe e eu sou um freudiano de papel passado…

Defecar em plena rua

Fui ontem à palestra promovida pela AJOC sobre a Media, Justiça e Violência, de que aproveito para felicitar a Hulda Moreira pela iniciativa. Poderia ter dito do que penso sobre a temática proposta, se o tempo do debate fosse melhor gerido e se da plateia uns não abusassem do tempo dos outros, não havendo ali nenhum mais iluminado para que acendesse sozinho a sala com as suas opiniões. Mas, para além do prazer de conhecer pessoalmente o Procurador Vital Moreira, jovem figura disposta a “incomodar” o status quo, aprendi que defecar em plena rua pode nem ser crime, mesmo que incomode o pároco, a patricinha e o turista. Em matéria penal, defendeu-se, o que não é tipificado não existe…

 
Segredo de justiça

Salvo o devido respeito por outras opiniões, muitas com mais ciência até, defendo que os os jornalistas – e muito menos o jornal – não estejam obrigados ao segredo de Justiça. Há pessoas que têm o dever de preservar o segredo de Justiça e a lei deverá ser clara e bem definida sobre esta matéria. Mas os jornalistas são profissionais da imprensa e, diante de um assunto de interesse social, têm o dever profissional de trazê-lo a público na forma de reportagem jornalística. E mais ainda: preservar a fonte (ou fontes), o que é garantido por lei. Alterar esta conquista civilizacional não parece trazer algum bem ao mundo. Antes pelo contrário…

(Estivesse entre os vivos Manuel Delgado, com a sua escrita afiada quem nem lâmina de samurai, cortaria ele aqui a custumeira prática do segredo de justiça para crimes públicos, desvirtuamento claro da filosofia do direito e excrescência jurídica que medra os nossos códigos. O Parncinha tinha disso: levantava a estupidamente gelada para o brinde e repetia Liberté, Egalité e Fraternité, companheiro)

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Tatuaria teu nome no meu braço

(Habita-me a partida. Habita-me ela, como quem diz: nenhuma rosa é necessária agora. Talvez outrora fosse caso de ficar. Deixar de ver o ilhéu de Santa Maria. Talvez fosse caso para amar. Habitas-me também. E o abrigo do teu colo é tudo. Tatuaria no meu braço teu nome)





O peso das coisas

Calha-me ser também vosso cronista: canta, irmão. Não único, pois há outros. Pelo menos nisto somos democratas. Mas falarei ininterruptamente de mim (eia, Osvaldo Osório!). O dever de vos relatar as peripécias desta viagem. Detalhar-vos dos náufragos. Sabeis da prerrogativa deste nauta ora desviado para a escrita? Estais interessados em seguir o périplo vendo a paisagem no Google Earth? Ou quereis atinar ao cujo do marroxo, pois dos pequenos nadas, mesmo dos indecorosos, se fazem grandezas? O paradoxo é que, das miudezas, nascem os grandes momentos. A maçã insólita, não aquela proibida no tristíssimo Éden, mas aquela caída sobre a sesta de Isaac Newton. A maçã da gravidade, mais que da gravidez, definiu afinal o peso das coisas. Ou a maçã da cesta (incestuosa, quiçá), pura merenda do Capuchinho Vermelho. Calha-me, das tormentas, contar-vos tudo, tintim por tintim e pelo twitter, de quem finge ser esta cloaca uma grande civilização. Pois, contento-me com o espectáculo do mundo. Delicio-me neste voyeurismo de pastar transeuntes. Sento-me à esplanada e, na meia hora que perco, me atulha o poeta, o imbecil, o génio e o vagabundo. Pago uma bica ao pajem e ao delfim. Ou será um querubim? Um maluco canta o Hino Nacional. Tudo pesa. Até o fugaz das coisas. É tudo por um triz na praceta.



Fonte luminosa

O poeta apalavrava-me ter composto tais versos pelo telemóvel. À medida que cinzelava poemas, mandava-os por SMS para a Dulcineia. Esta recompunha os grafemas a seus dígitos e deixava exalar a metáfora. Na praceta todos aplaudiam o feito inédito. Ou, para ser exacto, facto só contido em “Dom Quixote de La Mancha”, porque às tantas as ficções são sempre verdade. Apeteceu-me contar que eu também carregava o busto do Dr. António Lereno com a palma da mão. E, de um sopro, esboroava-o em cinza vermelha. Ou que o Pranchinha, diante de uma cerveja gelada, tirava da cartola uma fonte luminosa logo ali. Está-se mesmo a ver que a verosimilhança dá capote aos filmes de Fellini. Ou, então, que a musa desnuda saída de um véu de nuvem, tal qual Vénus emergente das espumas ou de concha qualquer, viria sentar-se no meu colo. E que frisson este de a gaja vir papar na minha mão. A sorte inveja. Está-se também a ver a ciumaria geral e em cadeia. Um pintor marreco a discorrer sobre os políticos. Quem se atreveu a chamar isto de parvónia só pelo modismo de pingar poemas nas tardes de Lisboa? Ora, isto aqui, pese embora o halo dos renitentes, é o centro do universo…



Homem de Pedra

De repente, os deuses resolvem tirar dali o Homem de Pedra. Transladá-lo para as calendas ou sabe-se lá outro sítio. Mas uma estátua, feia ou catita, inteira ou desfeita, tem peso e ocupa espaço. No imaginário daqueles que por ela passam, mesmo quando miram sem olhar. Considerá-la um mastodonte, um embirro machista numa terra onde os homens, perdendo a matiza, agridem as mulheres, seja o que for e como for, o vazio é que não. Quem sabe enxerta-se em seu lugar um obelisco à liberdade. A liberdade é hino e o sonho a certeza. E sendo certeza o sonho, implantava-se ali uma Mulher Voadora, com dísticos de “o céu é o limite”. Uma esvoaçante estátua. Uma geometria no espaço sideral. Quanto ao gosto estético, sempre frágil e duvidoso, já que a matilha tem inconsequente uivo, não muito melhor que o do vulgo, diga-se de passagem, pode a cidade, em referendo, escolher outra estátua. Desde que ultrapasse a cota da Achada de Santo António. É como decidir, no restaurante chinês, entre o “Clepe Plimavela e o Polco Doce”. Eu opto sempre pelo “Crepe Primavera”, com molho de soja, sempre menos indigesto que o porco com l pelo meio. Mas falavas do Homem de Pedra. Prefiro que me cantes o “Summertime”. Ou deixes fluir, no MP5, o trompete de Miles Davis...






(Tal como escreve Simone de Beauvoir, morre-se aos poucos. Degrada-se. Gradativamente. Caem os cabelos. As mãos, trementes, entornam o vinho. E molhados, de incontinência urinária, vivem aqueles que foram príncipes. Morrer devagar, como previra Mário Fonseca, num longo poema ainda inédito, que reclama vir à luz desta cidade)

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Roubada à inocência

(Um galo canta, o vizinho ressona e entra na crónica, obviamente sem pagar o copyright, nem esta insónia. No intermédio: então os deuses são fábulas ou lendas? Não que tenha de filosofar sobre a árvore que me concede a sombra. Soubeste-o sempre e não mo disseste.)

Eram contadas na minha infância

E, quando isto vem de tão longe, as coisas hoje saem-me assim. Sem primor, nem rumor, de glória. Muito menos o provinciano rancor de crioulo. Que eu, no sob as pontes onde perscruto sopros de vida, serei sempre este vago - lustro de tão raro, pequeno mau grado profeta -, e errante, pois, vou pelo ralo das margens onde, no verso, relva Deus e, na prosa, sendo esta do reverso, ressalva o homem. E, de súbito, sem que nada o insinuasse, faço-me errante e navegante. E é esta a modéstia que me tem pela colheita da palavra.

Mesmo que o arbítrio seja livre

Mas já de isento duvido, não seria eu, a tanto quanto me adivinho, o construtor de Tua igreja. Ademais, teimava Nha Gina, à hora de me contar as lendas, que era preciso a fé de um grão de areia, no que, dando troco, respondia só se, com ela, pudesse enfiar um elefante no buraco da agulha. Esgaravatando na pedra do riso, encontro isto: Quem não é demiurgo, atire a primeira pedra!

Mas como pode o insone cronista
Escrever de outro modo nesta madrugada em que ao verbo foi de Deus, antes de se lhe emprestar à criatura, dado que, modelar e sagrada, toda a escritura, mesmo a impostura doravante? Roubada à inocência, tudo é um enorme nonsense. E o apalavrar, em verso e prosa, bem a pulso como me concedo, é afinal guardar as margens de nada. Só porque as coisas hoje me saem assim.

(Não que o vizinho  tenha de me pagar portagens. O cidadão ressona, mas sonha. Deve estar a pastar pela revisão constitucional, arre. Quem sabe o seu cavalo alado ou o seu tapete voador, passando sobre Bagdade, tragam-me novos contos de encantar? Iconoclasta é o galo que canta nesta aurora urbana de ser isto o centro do mundo)





segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Só mais um instante


(Dir-se-ia que estamos na arena. Somos gladiadores de César. Somo-lo no coliseu das glórias e temos de exibir a decapitada cabeça do outro para o gáudio da plateia. Dir-se-ia que tudo, nesta cidadela, lembra à tua saudade, entretanto renitente)




Quiseram que o teu pai se ajoelhasse

Mas outro que contasse, maré baixa ou maré cheia. Outro que dissesse, com mais estrela, o topázio que brilha no firmamento de sermos nós próprios. Diante do altar de deus nenhum, que não fosse por ti. Iconoclasta, entraria eu pelo inferno aos pontapés. Ou, se fosse céu, chegava também ali logo a mandar vir. Não porque, em vida, emparelho quartetos e tercetos para distrair o mundo com sonetos. Nem porque, de tanta lida, satirize a ira dos deuses da esquina e da pira louca, quando não desvairada, dos sabidos da praceta. Outro que não eu, mas de mim, qual navegante de passagem, andará pelos bares e botequins desta cidadela. A contar as mágoas e as desventuras…



Essência do luar

Agora, a sério, este teu velho é um cavaleiro andante. Quantas noites fazem nele tantos anos? Quantos sinais de ti guardam esta sua cornucópia? Quantas cores, na panóplia do olhar, são as que se deixam revelar no caleidoscópio? A mim o que me mata é a arrogância dos filhos da Pátria. Eu, amante de marias mil (nenhuma santa e rara virgem, todavia todas cheias de graça), o que me mata é o estertor dos machos em delírio. Esta total falta de zen. E, tal como não sabes, sou um faquir na cruz do promontório e deixo-te, sob um travesseiro de cetim, o alheio plano das minhas viagens…



Enquanto a minha cidadela

Dormita, entre o pesadelo e seu folhetim, e à margem dos rios secos, bem como à salgadura das rias de costas outras, a cidadela, descosendo-se em novos-ricos que ao Estado deram golpe de alparca e fizeram, sob a lei dormente, a lavagem dos dinheiros. Dormita, amiúde esquecida, como as vacas que lhe pastam as áreas verdes das moradias e as áreas dotacionais das suas arestas. Dormita, onça que descansa, enquanto a nuvem, em viagem, lhe empresta atalhos que não valem algum caminho. Ouso dizer da lua cheia, assaz ilusão…



Não que me sacie o mar

Não que me sacie o mar, o marulhar das águas e estas neurastenias vagas, dos mareantes desavindos. Nem que me silencie, de tanto farfalhar no ar, o que me melindra em pássaro, mas afinal apenas nuvem. Espanejada flor, cor que se furta à dor, tenho da ramagem o azo das árvores e o prazo com que, de tuas também tantas musas, fica o sopro de vida no arquétipo de ti. Em verdade: nem isso. O deserto e as dunas, veias que tacteiam a carne e fluem o sangue, lá onde, exangue e lívido, o sermos homens acontece. Em verdade: o que nos apodrece e nos rasteja, tão em desalento quão em ditoso, é o enternecer do poeta - tudo o que lhe alumia o lado de sombra…



Peace and love

Somos carentes da Paz, companheiro. Da Paz social. Da Paz familiar. Da Paz individual. Somos carentes da Paz interior. O animal de nós próprios não se amansa e continua feroz. Nem o amor lhe aquieta, porque o ódio se impregna na outra face da moeda do Ser. Nem a fé lhe reconfigura, porque a descrença e a magma violência fazem ferver os nossos corações. Mas alguém canta, tributando à Iemanjá, o que as cartas, os búzios e os santos dizem. O desmancho em Salvador e o tapete vermelho das rosas nesse mar. Penso, (b) logo existo…






(Mas acho que desisto. O horizonte me mata. Isto aqui não me mata. Nem um bocadinho. Achadas, achadinhas, várzeas, fazendas, praias e gamboas. Já não digo montes, pois que loteados e esventrados, a metáfora da jorra é um desatino anti-poético. Entrementes, esta cidadela é nova: no sujo e no cristalino. Debalde, esta tua saudade renitente…)