terça-feira, março 30, 2010

Fogo

segunda-feira, março 29, 2010

Intervalo

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

Fernando Pessoa

domingo, março 28, 2010

O canto do condor

Parvónia, 27 de Março

(Eis que entardece. No chat, confessas a tua ignorância em relação aos versos de Walt Whitman. Eu também adiro à onda Basta Ya. Não se pode ser verdade, sempre a única verdade, desde 1959. A verdade, como em tudo na vida, é relativa e biodegradável. O meu amigo Omar Camilo constrói a exposição fotográfica “Amante Difícil”. Entre o sublime da arte e a angústia da denúncia. O Captain, my Captain…)



Pela Praça do Papa

Deve haver Deus no meio deste circuito, pois estamos nós em tempo de quaresma, e não mo dizes, mas sei que o pensas. Que tudo acaba em Páscoa. Falo para os meus botões, não vá alguém pensar loucura este meu balbuciar sozinho, estando a dez metros do meu pequenote a correr ruidoso pela Praça do Papa e estando do meu primogénito mais distante, por suposto não tão à mão de o afagar agora. Dizia para os meus botões o quanto te pressinto, fogo que também me ardes sem que eu veja, nem vá o diabo tecê-las.

Navio de velas pandas

Deve, sim, haver dedo divino que, no entremeio do profano, saiba acariciar a fronte dos ardentes e lhes aponte, vá lá que de soslaio, uma salvação qualquer. E eu, nesta deriva, como que, de hesitante, me armasse em navio de velas pandas e, em verdade, me faltasse força anímica para também correr até ao frontispício dessa luz. Eis que o Pranchinha, morto e arrefecido, mas em mim sempre armado em super-ego, me aconselha a despir desta coisa existencialista de sofrer, pois são dois dias esta vida e que, afinal, a lida toda é apenas o intervalo de um grande vazio. Apenso ao infinito ou à infinitude da morte, sem que ninguém (por céptico que seja) lhe adivinhe propenso ao regresso. Esse dedo, o tal que aponta para os anjos flutuantes e desponta, da nave à abóbada da capela (haverá retorno, em dimensão mental?), o decrépito da parvónia e digo-te, como diria ao miúdo desbragado que se quer rebelde por modismo, tal qual muitos curiosos de Jah, quem sabe da 13ª tribo, senão dos devotos de Jeová, se desnorteiam entre a rota para a Babilónia e aquela para a Abissínia, mas que sentados, num canto desta praça, tragam baforadas de marijuana.

Mais distante estarás tu

Também mais distante estarás tu, expectante de mim como o estarei certamente de ti, que isso de encontros às vezes nem resulta, mesmo quanto se revela preparada em lençóis de cetim, roupões perfumados, tatuagens ousadas e incensos de Kama Sutra. Ou estando a mesa, como a cama, também posta - champanhe no gelo, rosa no vaso, e à luz de vela acesa. Mais distantes, estaremos, tu e eu, em pensamento. Mas quando resulta, que eu também me fio pelo Álvaro de Campos (meu Pessoa de tantos personas), entoaremos juntos Olhai os lírios do campo...

Do canto do candor

Não sei se és nuvem ou miragem, se me esfumas tão simplesmente no turvar da bruma seca. Nem sabes se sou penugem ou plumagem de albatroz, se te afago o pressentimento e te recito “de tudo ao meu amor serei atento”. Quem sou eu para duvidar de propalada omnipresença. Já te contei do canto do condor? O pôr-do-sol visto daqui é mais que um poema. Os faróis dos automóveis tremeluzem no ir e vir para e do Palmarejo. Digo ao pequenote que são horas de recolher. Ele quer saber se é o mesmo sol para toda a gente do planeta. Estarás de olhos postos no sol? Ou estarás escrevendo sobre o teu beijo de batôn. Admitamos, sejas o omnipresente. No meio deste circuito…

(O Captain, my Captain, o condor tem garras afiadas, mas voa apenas ao redor do ninho. Antes que anoiteça, Cuba precisa mudar. A verdade dos betinhos é também relativa e biodegradável. Está claro que me arrenego de certas vernissages. O vinho é de baixa qualidade e é tudo à base de fritos. O mais é o medo legítimo de te querer muito. A tosse má para o meu peito quando te pressinto tão virtual, querendo ser de ti concretude, também como queiras sem máscaras, nem dissimulações. Quanto à arte, sem alarde…eis que entardece)

sábado, março 27, 2010

A força da razão - pelo diálogo, Zé!

O Primeiro-Ministro de Cabo Verde tem estado sob um autêntico "civilian oversight" - uns a aplaudirem, outros a deplorarem, mas poucos a analisarem -, mercê da sua inclusão de jovens ditos “thugs” como parte de um diálogo necessário na busca de soluções para o surto da violência urbana.

Nos últimos tempos, a sociedade cabo-verdiana assistiu ao surgimento eruptivo do fenómeno da violência juvenil no contexto urbano. Sendo novo, em termos até de magnitude, a sociedade tem-se mostrado despreparada perante tal fenómeno.

As respostas policiais, apesar de necessárias, diria mesmo, de muito necessárias, têm sido no entanto insuficientes, ainda que muitos cidadãos reclamem o tempo todo por respostas mais musculadas e punitivas. A par disso, eles vão também securizando, como podem, os espaços de residência, de lazer e de trabalho.

Um indicador expressivo da insegurança reinante é a consagração da segurança privada. A profissão de guarda tornou-se, em pouco tempo, algo muito comum e parte integrante da paisagem urbana quando, há uns anos, ela só fazia sentido em poucos edifícios públicos e comerciais.

A mudança de estilo de vida imposta pelo fenómeno criou na sociedade um profundo ressentimento e o fenómeno que lhe é correlativo, o da estigmatização do alegado delinquente. A sociedade chama-lhe de “thug”, corporizando assim a sua rejeição, o seu medo e a sua condenação. Mas, às vezes e em rasgo de reflexão mais demorada, perguntaria se o ressentimento não é recíproco, se o “thug” não é simultaneamente agressor e vítima?

Nesta relação entre os jovens de comportamento violento e a sociedade é preciso haver quem encare a sua acção além da necessária intervenção repressiva.

Que admita ser necessário liderar um novo modelo social para a juventude que passará seguramente por conhecer todos os meandros da problemática e não a uma tomada de posição musculada e pontual, baseada exclusivamente em medidas policiais, judiciárias e penitenciárias.

Que entenda que, além da utilização da força e vigilância policiais, com propósitos dissuasores, há que se usar a persuasão, o diálogo e o conhecimento recíproco.

É preciso que haja quem, para intervir de modo eficaz, recuse a transformar o dito “thug” num pária, num intocável no sentido de casta, num dálit, nem o reduza a um simples caso de polícia e de conflito com a lei; mas, antes, tenha coragem (e dimensão estratégica) para fazer dele também um interlocutor na busca de uma solução duradoira e sustentável.

A lei da física reza que toda acção provoca uma reacção. Assim, não poderia ser diferente neste cenário antes de tudo sociológico, mormente, quando nos referimos à violência urbana em latu sensu.

O caso francês, por não ser muito distante, me parece de alguma nota. Num passado não muito longínquo, dizia, um enorme surto de violência urbana, com forte componente de delinquência juvenil, tomou também conta da França. A explosão começara num bairro periférico de Paris, depois tomara conta da Cidade-Luz e, pouco tempo depois, alastrara-se por toda a França. De repente, esse país europeu viu-se literalmente “incendiado” pela ira dos jovens, na sua maioria imigrantes de segunda geração, que reagiam às políticas sociais excludentes e à ghetização dos bairros suburbanos.

Dominique de Villepin, chefe do Governo na altura, adiara várias visitas de Estado para resolver esta situação, decretando um autêntico “estado de emergência” e a "mobilização" do Executivo para "garantir a ordem pública", prometendo "firmeza e justiça" na resposta à situação de "bomba-relógio social" que a situação indicava. A primeira reacção do então Ministro do Interior Nikolas Sarkozi, foi de resposta policial enérgica. Acto contínuo, foi de resposta judiciária e penal, inclusive várias deportações.

Nessa busca imperiosa de soluções mais estruturantes, a voz autorizada do Presidente Jacques Chirac clamara sobre o País: "É preciso serenar os ânimos", sublinhando que "a ausência de diálogo [com a população dos bairros problemáticos] poderia gerar uma situação perigosa e de uma instabilidade sem precedentes". O Chefe do Estado pedira ainda ao Governo para firmar, através do diálogo, um “pacto social” com todos os intervenientes da problemática, inclusive os “jovens revoltosos” e que apresentasse, "no prazo de um mês", propostas para "acelerar e reforçar" a eficácia das medidas sociais contra a exclusão e a favor da igualdade de oportunidades.

Por conseguinte, mutatis mutandis, encaro a postura de José Maria Neves como uma abordagem, um método e uma estratégia, na linha da complementaridade às medidas policiais, judiciárias e penitenciárias, ora em curso. Não se trata aqui de se render à criminalidade, nem de se “empoderar” a delinquência, mas sim de acrescentar às medidas da lei e da ordem, aquelas que transformem o problema em problemática e propugnem soluções de reestruturação social.

Em primeiro lugar porque, até se provar inequivocamente o contrário, a violência juvenil provém também de um défice de reconhecimento social. Muitos dos ditos “thugs” são adolescentes que foram invisibilizados na família, depois de algum desaire, na escola, depois de algum insucesso, no grupo de vizinhança, a seguir a alguma experiência traumatizante. Até se provar o contrário, trata-se de gente a quem faltou auto-estima ao longo do processo de socialização. Porque tiveram dificuldades de diálogo com pais ou com parentes adultos, não estiveram em posição de comunicar aos professores as suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação à instituição escolar, não conseguiram transmitir as suas habilidades a um possível empregador. Enfim, a incomunicação marcou-lhes negativamente.

Assim sendo, eu pergunto se muitos deles não são, no fundo, ávidos de serem ouvidos, escutados e serem reconhecidos como “parceiros” na resolução dos seus próprios problemas. Há um livro que li ainda estudante, que se intitula “Como Eles se Tornam Delinquentes?”. Preciso relê-lo. Nele, o autor mostra-nos os complexos meandros sociais e psicológicos da construção do delinquente. O delinquente não dorme e acorda delinquente. “O delinquente nem sempre se torna, mas muitas vezes é tornado”, já dizia o meu amigo Crisolino lá de Belo Horizonte, hoje figura destacada na arte e no activismo social. Não há nada simples e linear nesta questão.

Entrementes, a explosão da violência urbana é um fenómeno que emerge dos bairros degradados, com problemas de saneamento, água e energia, saúde pública, transporte, habitação e policiamento. Nestes bairros, a maioria das pessoas está desempregada ou sub empregada. Há aqui uma relação causal entre a exclusão, a pobreza, e a origem da violência. Há aqui claramente uma problemática social que não se resolve apenas e redutoramente com medidas de coação. O fenómeno é social, exigindo um olhar sociológico.

Ao encontrar-se com os jovens ditos “thugs”, o Primeiro-Ministro teve uma atitude ousada, mesmo a risco de ser mal compreendido. Mas, como líder de uma sociedade preocupada com a violência, será que não teve a coragem extrema de fazer um gesto que “desestigmatiza”, que reconhece e reabre canais de diálogo hoje entupidos?

Para mim, foi um gesto de alta política. De grande estratégia de acção. Alguém terá dito, em jeito de censura, mas não deixando com isso de revelar um certo preconceito elitista, que os “thugs” não eram uma instituição para que o Primeiro-Ministro se encontrasse com eles. Será que elegemos o Governo para se resumir aos encontros institucionais? Quando Nelson Mandela entrava nos “tenebrosos cantos” de Swetto para “conversas pedagógicas” com os jovens em conflito com a lei, estaria ele a desviar-se das suas obrigações institucionais? Temos acompanhado as incursões do Mayor Menino, em Boston, pelos bairros de Dorchester, de Roxbury e de Mattapan, considerados problemáticos, tentando conhecer os “jovens problemáticos” pelos nomes, muitos deles cabo-verdianos, e levando-lhes soluções de integração e de “reeducação”. E esta? O mesmo vem acontecendo com os governantes portugueses e as edilidades da Grande Lisboa que entram nos bairros da Buraca, da Cova da Moura e da Reboleira para encetar uma plataforma com os jovens e os líderes locais, muitos deles também cabo-verdianos, na procura de soluções urbanas mais estáveis e mais integradoras. E os exemplos são muitos e inumeráveis de abordagens dialogantes que aditam à lei e a ordem soluções de assaz semelhança estratégica. Sem preconceitos, minha gente.

O pensamento de algum mainstream local tende a “invisibilizar” aqueles que não têm enquadramento institucional. Será isso completamente certo? Duvido. Outro achou que o gesto poderia pôr em causa autoridade do Estado, por eventualmente transmitir que se estava perante um acto de negociação com quem, afinal, viola a lei e os valores da sociedade.

Para mim, repito, o PM diz duas coisas: que condena a violência, mas preza a juventude. A primeira é inequivocamente condenável e como tal deve ser combatida. A segunda, os jovens…eles são nossos.

Um artigo de jornal diz que há meio milhar de thugs em Cabo Verde, uma inferência baseada em estatísticas policiais ou em dados sociológicos puramente matemáticos, numerário que parece não levar em consideração outras variáveis tão ou mais importantes para a compreensão da problemática. Precisamos de análises com uma dose de complexidade que permitam “salvar”, pelo diálogo e olhos nos olhos, esses jovens do “thuguismo” que os condiciona e os faz viver à margem das oportunidades que o País já permite. Como diria o escritor Arthur Koestler "as estatísticas não sangram..."

O Governo terá de agir com firmeza contra a criminalidade, procurando conciliar diálogo com todos os jovens, inclusive aqueles em conflito com a lei, e apelar à Paz Social com a necessidade de manutenção da ordem. Diálogo com todos os jovens, repito, pois eles são nossos.

Caso contrário, seria deitar fora o bebé juntamente com a água do banho. Um jogo em cima da linha. O Primeiro-Ministro faz jus à sabedoria de que não se pode enxugar o chão com a torneira aberta. Quando se faz assim, corre-se o risco de incompreensão.

A crise económica internacional e a consequente redução pontual do fluxo turístico não permitiram o crescimento a dois dígitos e a redução do desemprego a um dígito, mas a economia cabo-verdiana, mercê das almofadas financeiras e macroeconómicas criadas, ficou à tona da água e a dar sinais de continuar a navegar. O óbice do desenvolvimento, a ser, sê-lo-á social, se entretanto não estancarmos a tendência da VIOLÊNCIA URBANA. E este quadro de instabilidade terá de ser entendido como a tal “bomba-relógio social”, antevisto pelo então Presidente Jacques Chirac em se tratando da França. Em verdade, um ponto crítico, um desafio a ser vencido – e com urgência. E, no nosso caso, o "civilian oversight" apreciará a virtude da política quando propõe a força da razão ao invés da razão da força. Pois é, Zé!

quarta-feira, março 24, 2010

Gosto quando te calas porque estás como ausente

Gosto quando te calas porque estás como ausente,

e me escutas de longe, e minha voz não te toca.
Parece que os olhos te houveram voado
e parece que um beijo te lacrara a boca.


Como todas as coisas estão plenas de minha alma,
emerges das coisas plena da alma minha.
Borboleta de sonho, te pareces a minha alma,
e te pareces à palavra melancolia.


Gosto quando te calas e estás como distante.
E estás como queixando-te, borboleta em arrulho.
E me escutas de longe, e minha voz não te alcança.
Deixame que me cale com o silêncio teu.


Deixame que te fale também com teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longínqüo e singelo.


Gosto quando te calas porque estas como ausente.
Distante e dolorosa como se houvesse morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E estou alegre, alegre de que certo não tenha sido.




Pablo Neruda
in Vinte poemas de amor e uma canção desesperada

Conférence à Nice: "Comment la révolution libérale retentit au Cap-Vert"

En 1822 la révolution libérale sonnait la fin de l’ancien régime au Portugal en instaurant une monarchie parlementaire. Les bouleversements politiques survenus en métropole ne pouvaient être sans conséquences au Cap-Vert, devenu le théâtre de mouvements politiques et sociaux qui ont marqué de leur empreinte l’histoire de l’archipel. Le peuple, jusqu’alors plus ou moins résigné, réagit aux inégalités. Les agriculteurs laissèrent éclater leur colère endormie pendant des siècles d’exploitation. Nombreux et désœuvrés, les déportés ont conspiré et semé la panique. Après l’arrivée du bataillon Caipira en 1835, Praia fut mise à feu et à sang. Les esclaves, dans leur rage de liberté, ont joué le tout pour le tout, jusqu’à la rébellion ouverte.

Et l’indépendance, pourquoi pas?! Comme au Brésil…

Jeudi 25 mars, j’aurai le plaisir de revisiter avec vous cette période trouble de l’histoire du Cap-Vert. Cette conférence, à laquelle vous êtes conviés, aura lieu avant la projection du filme « A ilha dos escravos », à l’occasion de la Semaine du Cinéma Lusophone qui se déroule à Nice du 24 au30 mars.

jeudi 25 mars à 17h00
Auditorium de la Bibliothèque Luis Nucera
2, place Yves Klein - Nice

Merci et à bientôt
David Leite

domingo, março 21, 2010

As Sem - Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
E com amor não se paga.

Amor é dado de graça
É semeado no vento,
Na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
E a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
Bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
Não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
Feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
E da morte vencedor,
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, março 20, 2010

De tudo (ao meu amor) serei atento



«No auge da tempestade
há sempre um pássaro para nos tranquilizar
É a ave desconhecida
Que canta antes de voar»

René Char




Do (Ricardo) Riso

A Revista África e Africanidades realizará o seu I Ciclo de Encontros, com palestras e minicursos abordando temáticas que se destacaram ao longo das suas edições. As actividades serão realizadas nos dias 05 e 12 de Abril de 2010, no Largo de São Francisco de Paula, 34 - 5º andar - Centro - RJ, e as inscrições só poderão ser feitas no site da revista. Para efetuar sua inscrição, clique aqui.


Pego no html

Solta-se um hiperpoema tridimensional e interactivo. Creio-o conseguido. É Dia Mundial da Poesia. Tão logo amanheça far-te-ei uma proposta visual de poema substantivado a partir do nosso chat no Google Buzz. Não me fio na utopia do movimento quando de arte se trata. Tão pouco tenho fé nos poetas transitivos como se a pöesis, ao invés de significado, fosse um plástico significante. O suporte não importa. Pode o pergaminho ser do mais rudimentar. Ou muito bem o interface de um twitter, mas sem a ave desconhecida de René Char, tenham paciência os betinhos de serviço, pois aquilo não funcionaria. Faltar-lhe-ia um canto antes de voar...


Estival paixão

Sem algum alarde, meus amigos, meus irmãos. Um velho amor que parte, com tantas lembranças boas à beira dos frios lagos e dos alpinos montes, me remete a estes versos de Paulo Leminski: Inverno/É tudo o que sinto/Viver/É sucinto. Um novo amor que arde, já de crepitantes promessas, como chama de uma estação que se desfolha. E o poema de Pablo Neruda assim lhe rezará: Um clima de ouro madrugava apenas/as diurnas longitudes do seu corpo/enchendo-o de frutas estendidas/e oculto fogo.


Verbo do (re) começo

Mas cá sou homem de explicar paixão? Tenho cara de quem, para além do verbo amar, esmiuça o intervalo entre a intenção e o gesto? Acaso pareço aquele que ama sem pöesis e coloca a mão no fogo sem o unguento da poesia? Tenho, antes, um coração que sossega e dorme, mas que, ao despertar, procura o amor que lhe sela o destino. Pascal Avot dizia que as palavras nos podem proporcionar um pouco de conforto no vazio da infinitude. É verdade: as palavras são balsâmicas. São purificadoras, como água benta. No começo: era o Verbo. E, acto contíguo, o Verbo Amar...

Do álacre grito

Algo me grita álacre, coração que me estremece. Uma voz do além me sabatina e juro que não me excedi na dose, pois que estou resumido, se tanto, ao debicado trago do bom tinto. Um chamado, dizia, de toada mais imperceptível que propriamente inaudível, me desperta como lacre quente nos ouvidos e sei-o anónimo. Ah, terra de fariseus e sabichões, à incompetência destes e ao malabarismo daqueles, depressa se arranjou forma de indignar o Poeta: «Sentenciemo-lo também  à banalização da escrita!». Vou ao diccionário dos signos (a cada um, o seu talião) e, como se esperava, a vergonhosa justiça ali não se encontra escarrapachada. Uma  velha da mais antiga profissão que, de toga para o disfarce, exerce o meretrício desde as profanações e agora se mancomuna com os expedientes do submundo. Putis!, haveria de exclamar o Pranchinha se estivesse entre os vivos. De resto, a História não é um privilégio, mas sim um sortilégio. Sem tréguas...


Um olhar de soslaio sobre a mão de Deus da calva cabeça

«A tentação tamborilava do corpo da terra/ Para o ventre do homem».
Daniel Medina



Não pude escapar ao desafio de prefaciar este livro de Daniel Medina, alegando, de pronto diante do convite, que eu me dedicava ao ardor de criar a Pöesis e não propriamente ao labor de esmiuçar a criatura poética.

Nem tive engenho e arte para convencer o Poeta desta belíssima partitura que talvez outro desta praça crioula prefaciasse, com mais ciência e propriedade, o compósito das suas metáforas.

Vencido, mas não convencido do risco de vasculhar este livro, pus-me à procura do fio de Ariadne com que pudesse sair de assaz labirinto, posto que, do engodo da beleza, fui entrando pelo engano das palavras e ora estou cada vez mais entranhado pela “tentação que tamborilava do corpo da terra”.

Aquiescendo-me à arte dos sentidos, voltei a reler a imprescindível verve de Corsino Fortes, a ver se, para além do tributo que lhe presta Daniel Medina, descobriria nestes versos a pantagruélica prova de sua antropofagia poética.

O amanho, astúcia de quem neste livro escreve, regista a referente poética pelos signos seguintes: Mãe, terra, húmus, semente, ventre, seiva, sémen, parto, vida, árvore e tambor.

Regista-o também num jogo de sintaxe em que o verbo, signo da génese, se substantiva a cada página e recusa, autonomizando-se da lógica do telúrico, ser realista e cartesiano. Regista-o ainda na transposição, senão mesmo na subversão, da semântica, desconstruindo bíblicos sintagmas, quais sejam:

(…)

Maçãs e outras serpentes (!) a descarnarem
Fugitivamente enfeitadas
De machos e fêmeas
Em noites grávidas de mil carnavais

(…)

O antanho, de tudo afinal ser ontológico, quando posto em compostura, travestiu-me para olhar o onírico touro de Arménio Vieira no feitiço deste autor a “emprenhar som e fantasia” nos seus versos.

Onde pressentira eu isto? Porventura na poética de Corsino Fortes, mas o vate do criador de “Recode pa Humbertona” ou de “Não há fonte que não beba na fronte desse homem”, ainda que assim contrito, me parece muito mais contido. Quiçá na tecitura, de recitara existencial, plasmada nos coevos exemplos de João Vário.

De onde provinha esta aventura que, de remota mnemónica, me remetera ao épico de Gabriel Mariano, pingando das suas torneiras entranhadas a voz dos mortos ultrajados?

Haverá paralelo, quase simbiótico diria, entre as estrofes de “Capitão Ambrósio” e este perfilar apócrifo em que:

(…)

Da necessidade
O engenho Emanava
Nas mãos libertas Descobrindo
Nos olhares sagazes
Astúcias
Registadas Experiências
Descobertas
Desenhando
Palmo a palmo
Sonhos e medos
Lonjuras e domínios.

(…)

Eureka! Longitudinalmente, passeando por estes imprescindíveis poetas, a imagem de Corsino Fortes se reformatava. Era preciso desfragmentar assaz visão. Recompô-la para o disforme do verbo de tal fonte e seu fonema. A cabeça calva de Deus. Ora, vejamos-se:

(…)

Na continuidade do poema
Que a terra havido criado
E colocado por momentos
Na palma da sua mão
Sulcada de esotéricas fantasias

(…)

Será mão de Deus da calva cabeça a sulcada de esotéricas fantasias? Sendo ou não sendo, a questão deste livro, original no pastiche que assume e canibal no devorar as criaturas, inscreve um texto singular, na continuidade do poema que nasce do antanho e não desagua em estuário proposto e cumprido na orla dos deuses.

Bem alertara a Daniel Medina que buscasse outro, mais afoito à crença no pão da manhã, mas, como quebrar a resiliência de quem persegue a luz de konde plamanhã manchê?

Bem quisera que outro, buscando o mundo, discorresse mais neste prefácio sobre um novo poema, de largada pós moderna, mas que não nos sonega este remoer, visto “Tanha morrê na bandera de porta/C´se fome de maçã travessode na boca”.

E quanto à antropofagia poética acima porfiada e confirmada, voyeur que sou de coisa alheia e serpenteado de fome travessode na boca, palavra que não darei mais detalhes ao leitor. O livro começa nestes termos “A vida tem sido uma aventura”.

Entre, pois, o leitor também neste labirinto. E, antes que me esqueça: os desenhos (chaves de algum enigma?) são do autor…

Praia, 28 de Janeiro de 2010

Filinto Elísio

quinta-feira, março 18, 2010

Variando em ú

ale_luia como ave césar
lhe diluiam cristo e o bashô
de um santo disto tudo
um cal vário que dista joão

em mi fá sol lá da melo dia
melo sol de_nota si e sal
e não podia tanto castiçal
procissão no adro de_verso

musicar fonema e nausicaa
demorar o seu expedito ú
fosse poema ave que voa

ou então que me me_xias
tu em trave se não o gosto
do bu_raco e tu_bulação...


Filinto Elísio
Me_xendo no baú. Vasculhando-ú

segunda-feira, março 15, 2010

domingo, março 14, 2010

Femme nue, femme noire

Femme nue, femme noire

Vétue de ta couleur qui est vie,
de ta forme qui est beauté
J'ai grandi à ton ombre;
la douceur de tes mains bandait mes yeux
Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi,
Je te découvre, Terre promise,
du haut d'un haut col calciné
Et ta beauté me foudroie en plein coeur,
comme l'éclair d'un aigle

Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche qui fais
lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux caresses ferventes du
Vent d'Est
Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée

Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle,
huile calme aux flancs de l'athlète, aux
flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes,
les perles sont étoiles sur la nuit de ta
peau.

Délices des jeux de l'Esprit,
les reflets de l'or ronge ta peau qui se moire

A l'ombre de ta chevelure,
s'éclaire mon angoisse aux soleils prochains

de tes yeux.

Femme nue, femme noire
Je chante ta beauté qui passe,
forme que je fixe dans l'Eternel
Avant que le destin jaloux ne te réduise
en cendres pour nourrir les
racines de la vie.

 
Leopold Sédar Senghor

sexta-feira, março 12, 2010

Esmerado no aparo das utopias (οὐ+τόπος, sem lugar)


Não fosse o mundo paradoxo às voltas, seria ele, então, esse parado intradoxo? Estaremos, pois, em tal desencontro como que a um deus nos acuda. Mas será apenas nesse infeliz pormenor, nessa estada utópica, diria, o nosso raro encontro que a entropia, seus topos, trapos e tropos determinam? Entre nós não há escopos possíveis, tão pouco a axiomática dialéctica das amizades, posto nem mesmo que, de raro em raro confrontados, haveria aqui neste hiato senão uma adição de soma zero. Em Tessalónica (e para o gáudio dos gregos e  troianos), por tão incoerente conduta quão docta ignorantia, levaria o arguido seu pescoço à corda e, depois, ficaria de pernil esticado ao relento e à mão dos abutres. De pater demente e de mater leviano, o netinho do vovô veio à missa cantar sua novena. No indecente andor, parecendo aquela do rei vai nu, se nos confronta o tal rosto da democracia, sua missa requentada, açucena, coisa e tal. Há coisas que dão de dez às pragas deste tempo - dengue e caçu bodi -, sendo assaz cortejo das “virgens loucas” o que se vê. Agora, tu nesse meu filme? Olha que não. Não me foste tido nem achado no enredo. Deixa esse barrete para o consorte da cabeça que lhe caiba. As toupeiras do meu texto são outras. Enrabichavam-se esses (os que realmente me interessam cinzelar) pela prenhez de tantos ouvidos e armavam-se aqui em grandes como se os moinhos fossem castelos. Proponho um duelo mais profundo que aquele calculado fora da arena do Café Sofia. Confronto, a ser, sê-lo-ia entre estilos e posturas da redoma. Que o redemoinho desse cutelo nos rameire em mangal, mas assim tão parida de goiaba, olha que não. Vendaval de estrondo e espalhafato, coisa de gaiato, ou tão simplesmente artefacto de coisa alguma? O engodo injusto, dizia, é tomar inhame por bife e isto na parvónia é quase erro de Descartes. Tu nesse meu filme? Olha que não, repito. Talvez tudo não passe de pareidolia de um embeiçado papá nesse ouvir o diz-que-diz. Deixo passar o frio da mão. Destemperar o pulso. E voltar a emparelhar as minhas palavras em versos. No aparo das utopias. Novos sonetos. Outros...

segunda-feira, março 08, 2010

Perfume de Mulher

(Ordem, por favor. Nada de galhofa, pois, que nem um juiz, agora vos fala este cronista. Estejamos entendidos: nenhum homem é uma ilha. Ele é um arquipélago. Os que se acham um continente é bom que se vejam ao espelho. Eu, por exemplo, sou um pequeno Robison Crusoé e me aventuro pelo arquipélago de mim mesmo. Todo homem tem o sagrado direito à dita de ser um arquipélago. Não para que seja um eremita ou coisa parecida, mas para que resguarde as energias para a hora do barulho)


Feedback

Geralmente, tiro o domingo de manhã para passear pela reacção do leitor sobre o K Magazine. É um exercício que me dá gozo e que acompanho a ouvir boa música. Neste momento, escuto Guardanapos de Papel, de Milton Nascimento. Um que me considera demasiado hermético. Outro que me queria a escrever para os analfabetos. Não faltando anónimos, estes frustradíssimos pela impotência, a dizerem cobras e lagartos. Em contraponto à misteriosa que, dando mais uma chave do enigma, me jura amor platónico. Deve ser dos Tambores de Minas. Claro que o leitor pode (e deve) discordar do que escrevo. Estaria a ser ingénuo e incoerente se dele esperasse unanimidade. Essas lérias de unanimidade não fazem a minha praia. Se a minha sintaxe já mexe com uns e outros, a minha semântica, com mais propriedade ainda, lhes é um deus nos acuda. A vacaria sagrada que me perdoe, mas sou vaca malhada. Profana até mais não, para não vos dizer desviada da manada. Portanto, deixem-me escrever sossegado da silva os meus textos impossíveis…


Textos impossíveis

Chego ao café e mando vir um Ice Tea. Com gelo e limão. Os chatos pediriam um café e uma água, fingindo ler um livro em francês. Enquanto a malta joga xadrez ou fala do campeonato de Portugal. Quanta cacofonia! Há quem fique apenas pelas musas de plantão. Mas impossíveis porquê, há-de querer saber algum mais curioso. Manda a lisura explicar que estes textos deitam a mão do GPS para vasculhar o tal Ponto G e, se puderem, com ajuda do engenho e arte, o artefacto das palavras para que se atinja por estas bandas os ODM. Explico aquele sobre o GPS a uma enrabichada Afrodite, disfarçada no meu pensamento de uma Vénus, mas de vulgo Márcia, e complico as contas ao vizinho de mesa, isto de ODM que, ao seu patriotismo ufano, podem bem ser os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio. Já o Pranchinha, invisível em minha companhia desde que a morte o levou, insiste, seviciado pela linguagem da telenovela das oito, que o tal pó da ilha nua…é o cacete! Pelo Prancinha, as minhas desculpas. É o tal que dizia: nunca contes mais um ano, pois é sempre menos um ano. Deste modo, continua com os teus textos impossíveis.


Contingente da Cultura

Qual a percentagem da Cultura no PIB de Cabo Verde? Em que medida ela absorve a força de trabalho? Qual a taxa de crescimento do segmento cultural no quadro económico nacional? Como bem observou o filósofo Edgar Morin, a difusão da Cultura ganhou proporções inimagináveis, tanto horizontal quanto verticalmente, transformando as manifestações artísticas em mercadorias que "são as mais humanas de todas, pois vendem a varejo, os ectoplasmas de humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma". A produção cultural cabo-verdiana, marcada pela sua singularidade, diversidade e qualidade, para além da importância simbólica e social, deve ser encarada e incorporada como um dos importantes activos económicos, por assentar-se na criação artística, intelectual e na inovação, e pelo seu potencial de gerar desenvolvimento qualificado. É preciso reconhecer e promover a Economia da Cultura em Cabo Verde, nação constituída por comunidades residentes em dois grandes espaços dispersos, quais sejam as no Arquipélago (a vertente da insularidade), quais sejam as espalhadas pelo Mundo (a vertente da diáspora). Vamos vasculhar esta realidade?


(Ordem, repito. Não aquele silêncio impositivo e autoritário, mas esse contemplativo e zen, a querer ver o mundo pela via da nirvana. O silêncio da meditação e da levitação. O poético silêncio de um homem que apenas deseja encontrar-se, como diria Airton Monte. Essa coisa sossegada, mansa, suavemente silenciosa, como se estivéssemos no alto das Mangabeiras)

domingo, março 07, 2010

Mayra Andrade - em toda a lunação

Assim na arte, como na vida e é, a partir desta premissa, o modo com que me induzo a biografar Mayra Andrade. Ela, na arte, ganha a Medalha de Ouro nos Jogos da Francofonia, no Canadá, entre 35 concorrentes, sob o signo da música “Lua”. Tinha, na vida, apenas, 16 anos nesse pródigo ano de 2001. Já na arte, e porque nada é acaso, o músico Paulino Vieira já teria formulado, em pensamento, o que viria a dizer a Mayra Andrade: “Quando uma música está destinada a ser tua, vem ter contigo e não se vai embora.” E, quiçá, antevendo esse vaticínio, nasceria ela em Cuba, terra da Nova Trova, em 1985.

Mas será pela alteridade entre a arte e a vida o alarde que me motiva a escrever, sob pedido, a biografia de Mayra Andrade? Ou será que o faço, porque na fímbria de a descrever, navegarei também pelas s/cem margens de uma nação crioula, a mais ancestral de todas, onde nasce a Morna, a Coladera, o Funaná e o Batuque, entre os vários géneros musicais que vão fazendo, a seu tempo, o périplo (e o azimute) de Mayra Andrade? Ou, então, porque, livre das amarras que a vida e a arte por vezes determinam, ela assumiria que “Mais do que uma cantora de Cabo Verde sou, acima de tudo, uma cantora. A música sempre fez parte de mim. Se me apetecer misturar músicas cabo-verdianas com outros sons e influências, acredito que posso fazê-lo.”?

De uma coisa, estou certo: se tivesse que declinar as minhas preferências por dois ou três nomes da música cabo-verdiana actual, eu não teria dúvida de incluir entre eles o nome da artista Mayra Andrade. Também estou ciente de que não ficará aqui grafado tudo o que sei e pressinto de Mayra Andrade. A maior parte ficará dentro de mim em desfocagem com que se misturam nela a arte e a vida. De resto, biografar é retrato que se sujeita ao maneirismo da memória.

Por conseguinte, ela tem apenas dois álbuns, ambos de elevada ressonância, “Navega” e “Stória Stória”. “Navega”, porque ela própria é andarilha do mundo. É que as latitudes e as longitudes se podem resumir a um ponto existencial, ao fim e ao cabo. E “Stória Stória”, porque, pela rara voz e inequívoca beleza, pode ela aquietar os nossos espíritos com o dom de Sherazade. “Algumas das músicas têm algo de introspectivo”, diz, no pressuposto de que só se dá o que se tem. No consciente. E no não consciente…

Vive, desde 2003, em Paris, Cidade Luz. Para ela, Cidade Mundo. Mas também síntese de suas andanças de infância e adolescência pelo Senegal, Angola, Alemanha e Cabo Verde. Para não dizer corolário de vivências pelas músicas brasileiras, americanas, cubanas, francesas. Pelas inumeráveis músicas do mundo. Paris é a sua Estrada de Damasco para o mundo. Para a sua visão holística do mundo.

Em consequência, vence o prémio BBC Radio 3 World Music na categoria Revelação. O calendário diz que é o ano de 2008. É que a menina estrela do Satellit Café, de Paris, anos antes, gravara já, em momentos diversos e dispersos, com Charles Aznavour, Chico Buarque, Lenine, Mário Lúcio, Paulo Flores, Teófilo Chantre e Mariana Aydar. Na arte, era filha dilecta de Orlando Pantera e dele continua (em sereno gesto) inclusive no interpretar alguns dos maiores compositores de Cabo Verde: Princesito, Betú, Cacá Barbosa, Kim Alves e Tcheka Andrade e Daniel Spencer, para só nomear alguns. Na vida, Mayra Andrade é filha de Cabo Verde. É filha dos novos mundos que o cabo-verdiano criou, como rezaria sobre nossa identidade o poeta Gabriel Mariano.

A produção cultural de Mayra Andrade, que transita pelos domínios da música do mundo, abrange já uma gama considerável de perspectivas vivenciais e paisagísticas, com um enfoque predominantemente acentuado para o resgate da música cabo-verdiana. O que dizer desta intérprete e compositora de fulguração artística lastrada em múltiplas perspectivas? É sintomático nas suas composições o tropismo crioulo (linguístico e cultural) que se abre à assonância das sonoridades globais e das escalas improváveis. Sussurros de um liame cósmico…

A música de Mayra Andrade, tal uma lua cambiante e “cambante”, no sentir de Princesito, é feita de intimidade e de alacridade. São sonoridades e fragmentos que apontam para as formas inefáveis do confronto e da premonição. A tópica da lua: nova, cheia, quarto crescente e quarto minguante. As fases da lua, em nós - solidão, devaneios, conflitos, confrontações, ritos de passagem, sensações plurais em combustão, dores e alegrias, que se querem maduram. Mayra Andrade é, assim, toda a lunação. Assim na arte, como na vida…

terça-feira, março 02, 2010

MULHER

Tenho para mim (e comigo) que nesta hora
Nem grave, nem grávida, mas de apenas ponto,
Em que o próprio olhar (teu e meu) acaricia
Um corpo a que não chamaremos pátria…


E tão pouco, juntos, iremos, em desnorte e à sorte,
Percorrer a geografia rota, postos em distância
Tanto o gesto como sua vigilância, ávida que dita
A vida e, noutra trave, me saberás deste delírio…


E me haver senão teu corpo por nação e gruta
Em que aninho, onde me placentas e platinas
De tantas cavernosas vias e eu doutro caminho…


Mulher que me dás luz e sombra, ora abrupta,
Ora em liso desalinho, tenho para mim (e comigo)
A cave do risonho segredo quando me apareces…


Filinto Elísio

segunda-feira, março 01, 2010

De como se faz um romance

(Na fímbria do instante, onde só rala a neblina, a tua silhueta. Creio mesmo que halo de pequeno nada, chispa de nuvem. Uma coisa meio gasosa. Corola de fumo, diria. Pressinto a tua silhueta e tacteio-te ao de leve, entre o tocar e o não tocar. O esfumado derme do que seria corpo, adivinhado apenas pelo fugaz odor e esta secreta vontade de agarrar o galho das sombras. Quem, desta comparação da fala, abraçou já a neblina, atire agora, antes que a destemor, a primeira pedra. Tenha ela o frescor da aurora ou, quando não, o primor do crepúsculo. Vejo tua figura pelo fosco do pára-brisas. O trânsito flui pela avenida marginal. E o resto é pareidolia, vista assim do Farol Maria Pia)





De como se faz um romance


Não. Um romance não se faz assim. De crónicas soltas, esparsas às vezes. De retratos falados. Como se tudo estivesse turbinado em caleidoscópio. E o escritor drogado pelas entrelinhas. Um romance faz-se com plano de escrita e não ali ao sabor da brisa. Tão que te amanha a prosa quão vaporosa artimanha me requeira mais engenho que arte. Naturalmente que, dentro do texto, farei asfixiar um taxista, depositando-o acto contínuo na lixeira da Praia. Tentarei colocar nesse contexto um jovem crivado de balas por dois encapuçados. O puzzle do seu cadáver terá treze balas, para que o numerário, não sendo cabalístico, seja ao menos aziago senão mesmo de azar. Tudo não passa de palimpsesto, pois por haver apenas o painel de seis em que sois “tango em carminale”. Um romance, factual ou ficcional, faz-se de outra maneira. E não com protagonistas que saem destas páginas e entram na exposição dos 35 Anos das Artes Plásticas para regressarem mais tarde ao folheio das palavras. Quando, no leito desta hora, a cidade ainda anoitece…



E a quantas esta crónica

Eis que vem à tua liça mais uma carpideira. Choramingar-te que o mundo devia ser assim e não assado. Arre que o mundo é este paradoxo, torto que nem arame e de nada valeria esconjurar sobre o amarelo do jasmim. Sábia abelha que lhe medra o favo e drena dela o doce mel. O quanto de fatalidade há nisso? Haja um terabyte de caminhos desavindos para o empobrecido arbítrio do Ser que, existencial para caramba, lhe sobrarão esses ares de soba. Pois que bem-vinda, ó carpideira, teus óculos já não esconderem tão caudalosa lágrima. E, de soberba, cinzelarás palavras como armas de arremesso. O fel com que olhas em torno. O quanto sei os teus ais, ó carpideira. Travesti que és, meu pequeno vampiro. Vieste jovem, que nem um pajem. Vieste virgem, mas já leiloando o cabaço. Vieste tardia ao Carnaval e já és porta-bandeira, para o desgosto das lambisgóias, nereidas e janeiras. Não fosse esta a terra das oportunidades. Palavra que ainda não estou a gozar. E tu? Das oportunidades, com certeza. Mas saúdo-te, pois, mal ou bem…vieste!



(O trânsito flui pela avenida marginal. Ponho os binóculos sobre a rotunda do Monumento às Vítimas do Desastre da Assistência. Presumo ver, recuando no tempo, a dantesca cena do desastre. Agora a marginal está recortada de novos prédios, alguns até tapam o Palácio do Governo. Outrora, os esfomeados ajuntavam-se ali para a sopa do dia. Agora, com as luzes acesas, vê-se quão linda a nossa baia. A maldição desta cidade, adivinhem-na que dou um doce. Um bando de aves marinhas parte para a linha do horizonte. No rádio do automóvel, um samba insiste que o nosso amor é gostoso demais. Sou mais cronista que munícipe. Mais munícipe que crédulo. Um duende eu. Vejo as pessoas no jogging. É o que dá estarmos afoitos ao fim da tarde. Os deuses devem estar loucos. E os homens também…)