sábado, outubro 23, 2010

Luar

Acontece. Sabe tão bem gostar de ver o luar.

Com o olhar de homem mais maduro. Na linha daquela linda morna de Eugénio Tavares, em que o amor se lhe afinava no devagarinho e no tal entardecer da idade. Sem o cavalo largado e a relinchar de tanta juventude. Mas também sem as velas pandas de um veleiro em vento ausente. Apenas sereno, na verdade de chamar o «petit gateau» de bolo de chocolate e na afoiteza de ver a lua a se derramar neste momento a sua condição de astro pela noite.

Eu, por mim, me desculpando pela imodéstia, estou bem no ponto. Nem conto isso de folha em branco. Mais precisamente do monitor em branco. Tenho a pauta cheia e as sugestões são muitas. Uma amiga quis que eu escrevesse sobre a chuva. Outra sugeriu que pusesse no meu texto umas barragens retendo água. E não faltou quem quisesse uma escrita mais consequente, de companheiro das causas e das bandeiras. Mas, repito, estou no ponto de rir de mim. E de tudo…sem maldade nenhuma.

Sabe bem o estar assim, reconhecendo, sem drama, mas com calma, estarem estas mal traçadas de hoje meio complicadas. Tendo parco talento (e estro tão-pouco) para outra verve que não esta, escrevo apenas isto que me vai na alma. E faço-o nos meus limites. O nome que encima esta crónica é de uma famosa canção de Gilberto Gil. O mago diria que «a gente precisa ver o luar».

Quem sou eu? Não me conheço crente, nem descrente. Sou parte do nosso relicário…resguardo-me nestas margens de pessoa comum e me guardo, em metade rio das nossas vidas. Aliás, me vaticinara tudo isto uma baiana Mãe de Santo.

Os pratos que eu gosto? Em termos do comer, me apraz o trivial chicharro grelhado, arroz de feijão e molho escabeche, ou então uma barriga de atum (também na grelha), batatas cozidas e com azeitonas grandes. Obviamente, salada de alface, pepino e tomate, regada com azeite extra-virgem e o vinagre balsâmico. Pão, de todo o tipo. Um luminoso ovo estrelado, de vez em quando. Tudo disposto em prato grande, com aqueles desenhos de Miró. E, em termos do beber, chá gelado ou vinho tinto (para o fresco e sem frescuras).

Os poemas que leio? Gosto de tudo, desde aqueles versos de Neruda aos versos nas camisetas da Feirinha, passando pelo teu silenciar que me invade na paz de Alberto Caeiro. Imagine, fosse eu aqui listar os poemas que gosto e leio! Prefiro falar sobre as praias desertas ou as montanhas intermináveis. O homem banal tem cada uma!

Qualquer dia, saio a campear por aí, que o céu é grande e o mundo é largo. E a glória, diga-se por vezes o seu viés, é poder campeá-los. Entrementes, ter coisas e causas pelos caminhos, sobreviver aos vendavais e à calmaria, regressar a uma espécie de começo mesmo que nada nítido ao espelho. Qualquer dia, sou de viagem. Filosoficamente, já sou vadiagem…

Poderei nesta idade, de homem a caminho dos cinquenta, abrir-me ao jogo do destino? Fazer o quê se me alumia no coração a chama de uma estranha paixão? Estou idílico, leviano ou apenas sendo eu nesta eterna idade? Em verdade, nem sei. Nem interessa sabê-lo. Mas sabe tão bem gostar de ver o luar.

Bem, vou dormir o sono dos justos.

terça-feira, outubro 19, 2010

Dos primeiríssimos gafanhotos

Meados de Outubro

O mês vai célere, às vezes seco, outras vezes chuvoso, porém quente, muito quente. E, atento, vejo os primeiros gafanhotos e espero não vaticinem as sete pragas e outros quinhentos. À noite, quando a energia eléctrica dá o berro, já nem tenho forças para injuriar gente, pois importa resguardar a outra energia mental (e a paz de espírito) da resignação e da sabedoria. A silenciosa força de amar. Não voto, nem veto. Leio mais um livro de Manoel de Barros e sei que tu também estás atinada aos pormenores das formigas e abelhas, como estou eu dos primeiros gafanhotos ou estaria um menino do triste cão en passant. E, se madruga em breu, de par em par abro as janelas na afoiteza que o mundo tem lua e estrela, e, de pensamento, o existir se reluz em tal encanto. Quem sabe não sejamos deste lugar, nem deste tempo. Ou somo-lo, posto estarem em pauta os nossos respirares…

Dia Nacional da Cultura

Antes de mais nada, gostaria de chamar a atenção dos leitores para o momento importante que vivemos (efeméride dos 500 anos da Descoberta e do 35º aniversário da Independência), e gostaria de render uma homenagem ao patrono do Dia da Cultura, o poeta, o prosador, o jornalista e o polemista, cidadão Eugénio Tavares. Todos nós somos devedores da sua grandeza espiritual e do seu legado transcendental. Igualmente, dizer que os próximos tempos exigem, em termos de políticas públicas, o reformatar dos mecanismos de financiamento à Cultura, porque os modelos actuais já são ineficientes e inadequados à dinâmica da realidade. Neste últimos anos, podemos dizer que temos bons exemplos deste dinamismo, como as Bandeiras do Fogo, o Carnaval do Mindelo, as Tabancas de Santiago, os Festivais de Música, o Kreol Jazz, o Mindelact, os Raiz de Polon, Cidade Velha e o Campo de Concentração do Tarrafal, para além dos campos performativos entre vários outros, que nos apontam caminhos para a necessidade de um reposicionamento das políticas públicas da Cultura em Cabo Verde. À luz dos novos dados, há que produzir novos marcos que vão da lei de direito autoral até a de renúncia fiscal, passando pela recriação de fundos autónomos da Cultura, para que nossas ofertas culturais e sua cadeia produtiva venham conquistar lugares ao sol neste novo ambiente de fruição cultural que já nos marca.

Tempo, tempo, tempo, tempo (2)

Momento grande e não se pode ficar indiferente a isso. Um mundo melhor sendo possível. Acerca das eleições brasileiras, Chico Buarque diria: «Venho aqui reiterar o meu apoio entusiasmado à campanha da Dilma. A forma de governar de Lula é diferente. Ele não fala fino com Washington, nem fala grosso com Bolívia ou Paraguay. Por isso, é ouvido e respeitado no mundo todo. Nunca houve na História do País algo assim». Emocionante momento: um índio torna-se presidente da Bolívia e um negro torna-se presidente dos Estados Unidos da América. Já antes Harvey Milk, assumidamente gay (e empunhando assaz bandeira), ganhara eleições na Califórnia. Apetece chorar de emoção ver Nelson Mandela, em serena idade, a lançar mais um livro e os mineiros chilenos, do claustrofóbico cativeiro, a serem resgatados. E o Brasil, meu Deus, depois de um operário (que resolveu aos brasileiros as suas necessidades mais básicas de comer, morar, trabalhar, estudar, ter luz e saúde), ser agora uma mulher a próxima presidente. Momento grande…

Momento Tao

A igreja é de pedra. Ou de Pedro. Respeito-a já só por isso, mas o templo vivo de Deus é o homem. A outra Luz. Tão cheia de Graça…

domingo, outubro 10, 2010

Rasuras no Espelho de Narciso

 Foto: Marcelo Sant'Anna


Negraria

O Colectivo de Artistas Negros/as - "Negraria" - realizou mais uma etapa do projecto Diálogos com as Africanidades (música, dança, teatro, performance, arte e educação), no passado mês de Setembro, em Belo Horizonte. No "Negraria", segundo quem foi, a estravaganza da arte, cultura e cidadania dos afrodescendentes no Brasil. Participou do evento, a nossa amiga Rosália Diogo (foto), autora do livro "Rasuras no Espelho de Narciso", um trabalho de pesquisa com educadoras sobre a representação do negro na imprensa.

Academia

Agradeço à Academia Imperatrizense de Letras (AIL), que no seu último pleito eleitoral me elegeu, a par do escritor J.R. Guedes (São Paulo), como membro-correspondente. Devo-o também à professora e amiga Rute Pires, que me mostrou os caminhos do Maranhão. Esta nova responsabilidade - seja pois, com nobreza, todo o cargo seu encargo - é assumida com humildade de quem já acha ser hora de criarmos a Academia Cabo-verdiana de Letras, esboço de projecto nas mãos de Corsino Fortes, um dos nossos poetas maiores. Em verdade, o que impende sobre os ombros de um membro-correspondente da AIL?

Burke' s gone

Princesa, faleceu hoje Solomon Burke, deixando o nosso "soul" mais vazio. Festejemo-lo, todavia. Everybody Needs Somebody to Love. Meia nove meia, sendo hoje 10/10/10 no calendário. Eu votava em você, Princesa!


Uma Didática da Invenção

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
e um sapo engole as auroras


IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.


Hoje eu desenho o cheiro das árvores.


IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.


Acho que o nome empobreceu a imagem.


Manoel de Barros



sábado, outubro 09, 2010

Paz Inté Graal


Valha-me este dia

Não escreverei aqui do odiar as coisas mais deploráveis, como fosse eu, pobre mortal e pecador, o justiceiro deste dia que, apesar de aziago, tem em segredo do existir, os seus cantares. Nem porei, inscrito em crónica, o aviltar aos céus e catedrais, tão pouco o farei aos infernos, posto ser cá dentro a Caverna de Platão que se interioza e que me aterroriza mesmo quando se faz luz depois desta treva. Fico em paz e no meu canto, exilado na montanha, em zen e por nirvana, temente dos mistérios e atinente às buscas. Fico, andarilho monge e arqueiro manso, em querer saber do Graal, em querer saber do nada que, vez por outra, me ilumina…

Tempo, tempo, tempo, tempo…

Meus ilustres amigos, podeis querer recordar o passado, exercício necessário e mais do que saudável, tanto que Freud o explica bem. Mas regressar ao tempo ido, para além de quase impossível, se nos configura absurdo. As coisas passam. Passam-se até. E as sintaxes, as morfologias, as semânticas e as essências, bem como as ciências, vão sendo outras. Longe vai o tempo em que as coisas da metrópole se espraiavam pequenas e mediocres por esta terra, então província. Em verdade, mercê do vigente ordenamento (ou reordenamento em querendo vossas senhorias), já não há a antiga metrópole, nem a então província. Há mais de trinta e cinco anos que não as há. E este não haver foi o facto mais relevante (e, por consequência, mais sublime) de todo o processo histórico cabo-verdiano! Foi preciso, primeiro, a libertação (soberania) para, depois, conqusitarmos a liberdade (democracia)…

Travo ao subtexto

Revejo a prosa em perspectiva. Hoje, deu-me de vasculhar as gavetas, os cadernos, os moleskines, os arquivos electrónicos, os jornais, as revistas, os livros. Deu-me de ir ao baú das coisas feitas ao longo do tempo. Fazer o balanço geral. Os contos, as crónicas, as notas, as caudalosas fráguas de um romance em rampa. Tudo se sujeita a retoque, acerto e concerto. Nenhuma obra literária se esgota em seu próprio retrato. Para lá do formato, aparato e conteúdo. Fica-lhe premente e o inerente no dito e seu não dito. Fica-lhe o travo do subtexto. A escrita de ninguém se sublima em definitiva feição e muito menos em perfeição. Nem mesmo a de Eugénio Tavares ou de António Aurélio Gonçalves que, em podar a flor do lácio, dentre todos nestas ilhas, foram os mais delicados. Nem mesmo a tais mestres…

quarta-feira, outubro 06, 2010

Mãe

Como gostarias de ver a torrente das águas, descendo o monte em cascata. Como adorarias o rumorejo das águas, em bolhas de girinos que se tornam sapos. Coaxam ali coisas saltitantes; gorjeiam acolá coisas voantes. Para além do alvoroço, roçam pelas encostas a silvestre relva e o musgo silencioso. Cheira a rosmaninho e a chá de arruda. É tempo de chuva e tu distante do carinho que a ninguém eu daria. Entrementes, a escalvada cor da secura dando lugar a uma pele bem mais esverdeada. Infinda saudade de não estares aqui…

domingo, outubro 03, 2010

Fogo de boas águas

Cutelo Alto

No Cutelo Alto, Mosteiros, dorso escarpado e fértil, dir-se-ia encosta do Vulcão, os muitos e cruzados olhares e suas afoitezas. O descendente milheiral a perder de vista. Crianças douradas, olhos de uva, são ruidosas entre as folhagens e fumegantes casas. Posto que há vapores, fervores e, ressentidamente, amores de “padjigal”. A névoa assenta seu orvalhado manto sobre a música, igualmente ruidosa, de um terraço mais próximo. Grasnares esparsos (e os corvos já são raros), tão parcos quão reminiscentes milhafres. Rufares, alhures, no “padjigal” de amores acontecendo. Balbucio-vos os versos de Adélia Prado: Deus há! E pode que haja o diabo. As goiabas racham-se por não se conterem; explodem os amantes, frutos em si, de já maduros. Por mim já era semântico (balsâmico até) que os seres se amassem em assaz amanho. E a tarde se extingue alvacenta no Cutelo Alto. Não fosse a cerrada névoa sobre os cafezais, pareciam longínquas como estrelas as luzes de Santiago – a ilha grande…

Fosse em Siracusa

Não tomes nuvem por Juno (ou inhame por bife), assim me dizia o sábio, toda a vez que, por excesso de palavra, confundia mátria com pátria. Sobretudo, quando, no afã de certa história, me embriagava pela versão dos deuses da esquina e percorria as avenidas do tempo no carnaval dos renitentes. Dizia-me ele, sabido e probo, que da bandeira as estrelas caiam, uma a uma, e esboroavam-se no chão como cinzas. E o azul, cúmplice do vermelho, entrava na esquizofrenia do sem cores e um palhaço de serviço lembrava de entoar o desafinado hino, em que a clave, desafinada, a ninguém desafiava. Os pequenos deuses são de facto a nossa tragicomédia! É vê-los aos pinotes (em tanta egolatria), nessa coreografia de tiranos. Em Siracusa, eram motivo de chacota e de bater das latas. Por aqui, nem a vaia cidadã. No conto do sábio, soam à farsa. Ou, se tanto e com eufemismo, à representação burlesca. E, pensando em douta sabedoria e em toda a mátria, não me é preciso regressar ao quadro de René Magritte para entender que “Ceci n´est pas une pipe”…

Mil tons de Mário Lúcio

Saúdo, em toda a crença, o álbum “Kreol”, de Mário Lúcio Sousa, um dos mais sábios, talentosos e prolixos músicos deste nosso tempo cabo-verdiano. Com uma noção mais láctea e global da crioulidade, este nosso amigo traz, para a delícia das nossas almas, novos pensares e falares, outras sonoridades, que em labirintos de nós próprios, raras, mas pródigas vezes, se deixam esvair. Mátria esta, ditosa em toda a linha, seduzida pelo cognitivo pulsar (e mil tons) da sua Música em convívio com o Mundo…