terça-feira, novembro 30, 2010

Dos livros


Sequestro existencial

Dois livros me encantaram pela desmistificação do poder dos homens e pela essencialidade humana - «Os Sequestrados de Altona», drama de Jean-Paul Sartre, e «Ninguém Escreve ao Coronel», romance de Gabriel Garcia Marquez. Ambos radicalizam a forma como os homens (não) sabem ser e estar diante do poder (político, económico, social, religioso, outro). A metáfora da miséria orgulhosa do Coronel é paradigma dos homens em face ao destino. Diante do calvário de nascermos iguais e da democraticidade de morrermos todos, o intervalo em que vivemos é de si uma dialéctica no olhar dos outros. E no nosso olhar ao próprio espelho. Em verdade, somos sequestrados da vida, na sua luz e sombra. E em tese, ninguém é diabo ou santo. Todos somos (tão frágeis) dramaticamente humanos. Com o vosso perdão por este intróito de anti-História. Ou apenas este rasgo de estórias que vão compondo a História. Ou, ainda, vice-versa…

Valorizando a História

Faz bem ler pela madrugada, quando já anda tudo a dormir. Faz bem, esquecido das horas e das desoras, remoer páginas inteiras no barulho monocórdico de um relógio. Petit bruit, como diria alguém que me sussurra o espírito. Remoer livros. Por estes dias, tenho estado a ler um livro de Laurentino Gomes. Intitula-se «1822» e conta estórias de um período muito especial da História do Brasil. Talvez por ter contado estórias, o livro se tornou num best-seller. Tornando coloquial, senão mesmo banal, feitos que afinal nem foram factos e criando interesse por figuras que a oficialidade às vezes recusa, a obra de Laurentino Gomes marca o seu espaço editorial pela linguagem discursiva e pelo fino, quase imperceptível, recorte humorístico. Pessoalmente, o texto prende a minha atenção pelos detalhes da época (século XIX, no caso), algo que também captei na releitura de «O Senhor das Ilhas», de Isabel Barreno, e de «A Morte do Ouvidor, de Germano Almeida». Estes também contam estórias. Valorizando a História…

Máscaras dos outros

Li também, com vivo interesse, «Máscaras de Salazar», de Fernando Dacosta, e confesso que me fascinou saber o lado humano do ditador português. O homem que, por trás do sombrio e do retrógrado regime imposto a Portugal, soube ser casto e humilde, impondo-se a si próprio um viver sob valores do patriotismo e da família. Naturalmente que, em seus auspícios, floresceram a polícia política mais grosseira e a Concordata que lembrava à Inquisição, com perseguição de cidadãos e aberturas de prisões, de que o Campo de Concentração do Tarrafal é o mais gritante exemplo. Todavia, há também estórias com interesse para além da História, sendo esta, quase sempre, o karma dos contemporâneos. Com mais distanciamento, havemos de encarar António Oliveira Salazar com o desapego emocional (e, quem sabe, sem raiva) com que encaramos o Marquês de Pombal. Admirando-lhe a estátua, eixo distribuidor de Lisboa, encantadora cidade…

Antropomórfico tão-somente

Tudo isso me fez lembrar Lani Guinier, politóloga e autora do inultrapassável livro «Tirania da Maioria», algo que se recomenda à nossa política local. Ela recomendava, apesar de tudo, a releitura da História sem assomos da emoção, nem despiques ideológicos. Qual o encanto de passearmos pela Via del Fiori Imperiale e pararmos, deslumbrados, diante do Coliseu, se os Césares foram o piorio em termos de práticas humanas. Basta lembrarmos Nero e Calígula, entre tantos. Afinal, a figura do temível e sanguinário Napoleão Bonaparte, hoje valorizado pela França democrática, não teria o brilho toponímico e efeméride, nem contribuiria para engrandecer o País. Outrossim, Thomas Jefferson, à sombra do seu genial espírito libertário, foi senhor de escravos e Winston Churchill, símbolo da resistência ao nazismo galopante, era um colonialista de primeira e os colonizados do Império Britânico viviam sob a indignidade e servidão. Há que contar estórias para que a História se proceda, sem fatalismo, mas com o seu inexorável sentido antropomórfico, inclusive de ser o homem o lobo do homem…

segunda-feira, novembro 22, 2010

Tempo, tempo, tempo, tempo (III)



Remanso

ter um livro para ler
e não o fazer

Fernando Pessoa

Aprende-se que ficar na rede (sem pensar em nada), nessa metafísica bastante e bem pessoana, é uma delícia. Balançar, mas ao de leve, não fosse o cronista, em desarranjo, transmutar o bulício da vida. O desassossego apenas e tão-somente de ouvir a morna “Mar Azul”, com Cesária Évora e Marisa Monte. Ao tempo dos alquimistas, o engenho e a arte eram uma só ciência. Tenhamos consciência disso. E o pensamento, como outrora, sendo afago do remanso. E, se tanto, de a voz, que será tua, a recitar uns versos de Adélia Prado. Uma delícia, carícia quase...

Cronista 

Está na cara que não é nada fácil a vida de cronista em Cabo Verde. Não deve ser fácil o metier em qualquer outra parte. O condicionamento dos outros. A alteridade em nós e nos outros. O caos das identidades. As transposições, as leituras transfronteiriças. Uns querem ler crónicas de “belas letras”, com floreios literários ou de novela, e nem sempre tenho pachorra para escritor. Outros demandam que afronte a vida política nacional e dê opinião sobre isto ou aquilo, este ou aquele, o que cada vez menos me anima. Quando não se espera de mim coisas mais estapafúrdias, como seu eu tivesse compromissos com a chatice do processo histórico. Não é raro sentir-me como uma arma de arremesso, karma dura e neurótica. E eu que apenas queria escrever, a cada momento, o desvão das minhas lembranças?

Património Imaterial

Cabo Verde, que tem na Cidade Velha um lugar classificado como Património Universal da Humanidade, poderá ter outros sítios com tal estatuto: o antigo Campo de Concentração do Tarrafal. Ou, então, a Cidade de São Filipe. Ou, ainda, a Baía do Porto Grande. Mas também poderia candidatar-se ao reconhecimento da Unesco com a Morna, o Batuque ou a Tabanka. Candidatar-se ao Património Imaterial da Humanidade, mais precisamente. Quem sabe, se com a secular técnica de feitura da aguardente de cana. Ou com as Bandeiras do Fogo. É tudo uma questão de atitude. E, sobretudo, da capacidade de argumentação sobre os valores excepcionais e diferenciais dessas manifestações culturais e de como se integrar a um selecto grupo de 232 monumentos “intangíveis”. Na semana passada, uma quarentena de actividades tradicionais ganhou o status de património da humanidade da Unesco, entre elas a acupunctura chinesa, o flamenco espanhol, a arte de domar falcões na Mongólia e a de produzir biscoitos de gengibre na Croácia. Chegou a hora de pensarmos em tudo isso...

Brasil – Cabo Verde

Leio (e recomendo) a leitura de “1822”, de Laurentino Gomes. As circunstâncias da Independência do Brasil remetem de alguma forma ao passado em Cabo Verde, nesse mesmo período. Entendendo esse recuo, entenderemos outras realidades que são nossas e que se desfiam, incógnitas, mas não anóminas, sob as nossas percepções. Em Cabo Verde, houve sim um movimento independentista de associação ao Brasil. Era uma parceria estratégica. O ethos foi sufocado, como foi aquele de Angola igualmente de associação ao Brasil. Quem sabe se, ora em tempo de parceria estratégica, não nos afronte a necessidade de complementar o arquipélago ao continente. Incontinente direi que há espaços que almejam o seu norte e há aqueles que precisam do seu sul. Sem desnorte para os nosso interesses nacionais...

sábado, novembro 20, 2010

Os alquimistas estão chegando

Nem tudo o que reluz é ouro. Reluza, em nosso pensamento, o vão das coisas. Reduzam ao nada os exuberantes catedrais. A grande cidade. Pó, simples pó, as torres, os obeliscos e as muralhas. Ó grandes impérios que não passam de hiatos. Esboroando no deserto e no além, as vozes diáfonas dos deuses. Tudo não sendo eufórico, nem luminoso. Tudo não sendo o sentido das coisas. Os alquimistas estão chegando. Vamos à desdita de transmutar os metais menores que ouro. Assumir a degradação dos diamantes. Eles não são eternos. O elixir de uma certa vida. A que se assume alteridade na nossa fragmentação. E das nossas verdades estes ladrilhos que vamos sendo.

sexta-feira, novembro 19, 2010

Exercício de contraste

Naturalmente que todos temos as nossas escolhas. Temo-las por razões diversas. Às vezes, por convergências ideológicas, outras vezes por pragmatismo. Isso, sem falar dos interesses, já que a política perspectiva interesses (de grupos e de indivíduos) no espaço e no tempo. Mas quase sempre precisamos de mensagens claras para ajuizar e gizar. Para que nos reflitamos no espelho, é preciso que este não seja embaciado. A face clara das coisas, de que somos ao fim e ao cabo.

Cabo Verde vive um momento pré-eleitoral pautado por uma enorme inflação de mensagens políticas, umas perdendo eficácia comunicativa e outras não ganhando inteligibilidade, aos olhos dos destinatários. Por se tratarem de umas eleições marcadas pela bi-polaridade partidária e pela comparação do perfil de dois partidos em disputa, os discursos para a opinião pública deveriam ser, a nosso ver, mais claros e assertivos, sublinhando contrastivamente não só as suas respectivas características ideológicas, mas, sobretudo, as suas obras enquanto partidos que já governaram o País.

A par dos partidos, não seria incoerente também o contraste entre os dois líderes. José Maria Neves, actual Primeiro-Ministro, e Carlos Veiga, Primeiro-Ministro nos anos noventa, que tiveram o raro privilégio de servir, aos 41 anos, como chefes de executivo de Cabo Verde, no quadro constitucional da democracia multipartidária e, nesta condição, beneficiar, ambos, de dois mandatos, podendo, nas prerrogativas legais que lhes foi facultado pelo regime, mostrar as suas capacidades de liderança, de patriotismo, de gerir o bem-comum e de gerar prosperidade para o país.

Como sairíamos mais a ganhar, porque mais esclarecidos, se a pré-campanha assumisse um diapasão diferente, numa linha de mensagens (que fosse dos outdoors aos tempos de antena televisivos e radiofónicos, passando pelos discursos nos eventos partidários) com dados, os mais objetivos, respeitantes ao cenário dos resultados ao fim de cada um dos mandatos. Ou seja, os diferentes sectores comparados em 2000, fim dos mandatos de Carlos Veiga, e em 2010, fim dos mandatos de José Maria Neves.

Os tempos são diferentes. Alguém há de querer comparar tempos dispersos e distantes. São razões válidas e aceitáveis. Ninguém detém verdades. Tão pouco detém a Verdade. Ao exercício de contraste...pois, com certeza.

terça-feira, novembro 16, 2010

Poema dos sóis laranjas

(Pôr do sol é um poema que se evade de quem o pensa)

Em certas horas, o poema
evade-se de quem o pensa
e percorre-lhe poentes.

Mau grado por espaços,
vem ele metafórico
(seu fonema)
para os tempos.

De a palavra ter-se ali,
pela clausura dos versos,
textual, mas incontido recluso,
no só soletrar-se em fuga...

Dela, mais que à coisa,
o pousar, mesmo calada,
seu vôo inteiro pelo vão
seu tudo ladrilhado
de mim em tanto espelho...

Dela, que nem ao corpo,
sua sintaxe, tanto que arde
como que parte ou regressa,
ultrapassa o sol de gatear
semântica em gota de água...

(Os poentes, seus cambares...ó cidade)

Desgovernado, o poema
é mais que procura, alucina
pensá-lo em seu transbordar
e sua loucura ensina
poentes sem ambares azuis,
nem sóis laranjas de certas horas...

Filinto Elísio

domingo, novembro 14, 2010

Vila Rica de Quartzo

     A língua é por essência a ferramenta do encontro
Autor que desconheço

Nosso quartzo 103

Como um pêndulo, voltamos sempre à pedra que nos é preciosa. Antes, homenageando Oscar Niemayer. Este ano, a pretexto das letras. Mas, em verdade, porque em finíssima estampa, é uma cidade que a mim descortina o teu sorriso, mesmo quando chove na pedra. O teu sorriso que me encanta. Em alteridade, que os ladrilhos do espelho quebrado de mim permitem. O poeta Guilherme Mansur, diria “vista do quarto/de tanta pedra/quase me quartzo”. No saguão do Hotel Casa Grande, o movimento é grande de partidas e chegadas. Partida do IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e chegada para o Fórum de Letras de Ouro Preto. E chove. E tu sorris para o quartzo da minha alma...

Encontros

Os encontros de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa tornaram-se o maior e o mais sistemático dos eventos sobre as “africanas”, realizados no Brasil. O I Encontro foi iniciativa da Universidade Federal Fluminense, seguido pelos encontros sediados pela Universidade de São Paulo em 2003 e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2007. Para além dos professores brasileiros e de toda a lusofonia, os encontros têm sido momentos para a reflexão e para o debate de investigadores, estudantes, escritores e curiosos das letras com a África por pano de fundo. Desse ponto de vista, a Associação Brasileira dos Professores das Literaturas Africanas, com a participação de várias instituições acadêmicas e de várias personalidades universitárias, representa um dos grandes ganhos para o estudo das literaturas africanas, algo que determina um incremento incomensurável para a afirmação e para o intercâmbio entre os países de expressão oficial portuguesas e as “belas letras” que neles se fiam as respectivas culturas.

IV Encontro

Este ano o IV Encontro, realizado pela PUC Minas, pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Ouro Preto aconteceu na cidade de Ouro Preto, outrora Vila Rica com o seu esplendor de arte e cultura, ora com o estatuto de Patrimônio Mundial da UNESCO. Perspectivar a África a partir de Ouro Preto foi feliz e profícua idéia. Por conseguinte, esse IV Encontro pôs-se a refletir sobre repertórios culturais e literários da África, problematizando-os em seus contextos vários e em suas correlações diversas. Os eixos temáticos – dez ao todo – enfatizavam a pesquisa e o estudo sobre as inúmeras configurações e formatações, sem descurar dos caminhos, da literatura africana. Para além destes, várias mesas com diálogos, uns impertinentes, outros pertinentes, com escritores, professores, estudiosos e outros, não faltando as obras várias de título e de editora, em lançamento e exposição livreira. Uma stravaganza. Um sucesso. Os objetivos, creio, foram alcançados e o projeto dos encontros, dizem os mais entendidos, ficou, não só consagrado, mas qualificado. Exemplo disso: a criação formal da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos – AFROLIC.

Fórum das Letras

Igualmente nessa cidade síntese da arte colonial e da marca cultural negra, não apenas pela expressão de tanta história, mas pela exuberância de assaz patrimônio, aconteceu (em articulação ao IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa), o Fórum das Letras de Ouro Preto. O evento, que já se agigantou para ser dos maiores do Brasil, é coordenado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Este ano, para homenagear os 300 anos de Vila Rica, o Fórum também teve a África como centralidade. Toda a um manancial de eventos - Programação Principal, Fórum das Letrinhas, Literatura em Cena, Ciclo Bravo! de Jornalismo e Literatura e Via-Sacra Poética, além de exposições e outras manifestações artísticas e folclóricas – com a derivada no continente africano.

Chuva de estrelas

Embora eu estivesse no Fórum para ver Adélia Prado, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar e Luandino Vieira, fui também apanhado para palestrar no painel sobre “A leitura e a escrita como experiências de alteridade”, realizado no Cine Vila Rica, sob coordenação do Jaime Prado Gouvêa, contista mineiro, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais. Nesse nosso painel, também o escritor Flávio Carneiro disse que. “O conto é impregnado de experiência do outro”. Acanhado diante do público, quis eu que a escrita fosse “o meu outro como um poliedro que me impõe a identidade do eu”. E tu, da platéia, sorrias. Por alteridade...

sábado, novembro 13, 2010

Ouro Preto

Foto Genivaldo Cordeiro

quarta-feira, novembro 10, 2010

Meu pai

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

Ferreira Gullar

segunda-feira, novembro 08, 2010

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Puro incêndio

Incendiário, eu? Creio que não, meu coração. Para mim (e neste momento), o pôr-do-sol é o incêndio já valendo a pena. Os seus tons de amarelo e vermelho; as suas nuances de violeta – tudo a esbater no anil do céu e na turquesa do mar. Faz-se, assim, o construto da minha emoção. E, compondo, em assaz linha, a paisagem (da janela da minha alma, pois claro), acrescentaria um pássaro deslizante a caminho do poente e recitaria (em balbucio mental) o poema “Cinzeiro”, de Jorge Barbosa.

Jantar “chez Nazareth”

Sentir-se quão frágil a vida. Frágil, contingente e “debole”. Por isso mesmo, bela. Luz afoita em seus apagares. Outros esgares que, podendo, sejam de amores. Noite de vela acesa e leve, crepitando, também frágil, sobre a corola dos falares. Diáfano aroma de cachaça mineira e de um canapé em flores e frutos. E, como também és bela, no que recusas de essencialismo e no que assumes de existencialismo. Sem aparato, apenas de sopro. Sem arquétipo, mas de corpo inteiro. Digo-te ser a curva mil vezes mais certa que a reta. Provam-na a errância, o retorno e o buraco negro. Provam-na a política turva que é também conversa, em ceia de pão, vinho e palavra. Quão frágil (e fugaz incenso de ópio) esta vida. E o bater das horas. Com chuva lá fora...

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Uma mulher está em vias de ser apedrejada até à morte no Irão. Chama-se Sakineh Mohammadi Ashtiani. Posso ficar calado, aderir-me aos “animais de capoeira”, como descreve Armênio Vieira sobre os homens inertes? Posso fingir, pobre de mim, desconhecer a barbárie de um Estado Leviatã ou de um Anjo Exterminador que permitem apedrejar uma Mulher até à morte por (leviano talião) da Justiça? Posso, homem de brio humanitário, compactuar em mim com um regime da excrescência, onde o Poder prende, tortura e mata? Posso, para o sono dos justos, aceitar na minha simples fala o fanatismo diabólico de quem se arroga autoridade divina?

Pedaços Dele

A pena da morte, onde quer que seja ou esteja, é o maior atentado à Vida. Aos Direitos Universais. À Humanidade. Ela representa o avanço da barbárie sobre a civilização, merecendo a condenação dos homens e das mulheres de “boa vontade”. Não se trata aqui de condenar o Irão tout court. Trata-se de deplorar e de levantar a voz, por miúda e marginal, contra as execuções dos seres humanos, contra um atentado físico e mental extremo. Contra a dor física de matar e o sofrimento psicológico da morte anunciada. Contra o permitir o diabólico poder aos humanos para serem o Deus da Morte, ao invés de sagrados filhos do Deus Maior. Sem apedrejamento, nem forca. Sem cadeira elétrica, nem injeção letal. Sermos o cataclismo do Bom Deus. Sermos fragmentos e estilhaços. Cacos do seu Cálice em quebra. Pedaços Dele...

terça-feira, novembro 02, 2010

Um santo em mim

Tempo da Cabala

O amigo Luís Geraldes, artista plástico português, criado angolano, mas a viver na Austrália, fez-me a pergunta. Era uma inconsequente madrugada no «Galeto», em que eu e o meu editor íamos aos pregos com mostarda e às cervejas bem geladas. E a pergunta era: o que revela o perfeito equilíbrio entre o céu e a terra, a água e o fogo? Talvez quisesse ele que a minha resposta entrasse na Ordem do Templo, mas soltou-me ser a Paz tão-simplesmente, essa coisa que lhe leva o vento de Lisboa e que não pára em tempo da Cabala…

Do eLeitor

Não o chamaria de eReader, pois não tomo por empréstimo à língua inglesa o que esta flor do lácio também tem. Chamo-o de eLeitor, não eleitor, note-se, que vai às urnas votar, mas aquele que navega e lê os meus textos digitais. Por conseguinte, o meu eLeitor, devidamente identificado (nas antípodas do anónimo, que é apanágio desta parvónia), querendo saber o porquê de textos herméticos, senão mesmo criptográficos. Faço-o entender que estar na eterna idade de ver o luar, acto simples e singelo, nada tem de misterioso. Ver tão-somente para acreditar que a vida vale pelas coisas evidentes. O luar pelo luar, sem outro navegar…

Cidade novembrina

Novembrino mês. De ameno tempo. Outrora, novembrino de estio e de fastio. Agora, o cio da terra é das águas. E a leve brisa que bole as árvores da minha cidade? E os acordares, ainda para o sereno, que esta metrópole, a ser, concede? Os cantares de galo numa urbe com Bolsa de Valores! Tens o corpo disforme, ó Praia. Malha mais estranha. A mim entranha tua alma novembrina. Os que te esventram, por estupro e por rapina, não te saberiam no lado de cá. Olho-te do mar aos montes. Lânguida. Sensual. Liiiiiinda. Para o desgosto dos que te desamam. Apesar do lixo e do luxo, dos thugs e dos vips, liiiiiinda. Que ninguém ouse matar a tua silenciosa estética de estares assim no abraço atlântico…

Bashô um santo em mim

Releio, com calma e vagar, os versos de Maria Helena Sato, de quem sou amigo e admirador. São versos deliciosos. De quem sabe colher o melhor perfume de uma flor de três pétalas: Brasil, Cabo Verde e Japão. Gostei particularmente do livrinho «Bonsais e Haicais», em papel 100% reciclado de embalagens Tetra Pak. Às tantas, Maria Helena escreve:

Granizo
destruiu meu teto.
O sol me vê
estendida,
quase desistindo
de secar.

Fui assistir à apresentação dos livros de Maria Helena Sato, aqui na Cidade da Praia, e encantou-me esse assumir modernidade poética no imperceptível das coisas. Ricardo Silvestrim, outro poeta bem-aventurado, diria: «Bashô um santo em mim». Total…

Meu Brasil, brasileiro

Dou comigo vibrando, de contente, pela vitória de Dilma Roussef nas eleições presidenciais brasileiras. Eia, para Você que se levantou cedíssimo para ir votar, aquele abraço. Em verdade, para mudar o mundo. Estou orgulhoso de Você. E não é que o mundo mudou? O Brasil, que se afirma como quinta maior potência mundial, tem agora uma mulher na Presidência. Antes, já era um ex operário e ex sindicalista. Agora é uma mulher.