segunda-feira, janeiro 11, 2010

AS CORES DE OSIRIS E DE SET




(As de Osíris são preto e verde, já as de Set manifestam-se como um deus vermelho, símbolo da guerra)



Tudo é Nilo

Amanhece com alguma calma. E Thot, o deus que o tempo mede (da clepsidra ao relógio atómico, disfarçado assim de Cronos), tentava jogar seus dados com a lua (a deusa Nut) para escapar da maldição solar. Por isso, amanhece, longe da cólera de Rá, apaziguando o universo. Como uma melodia que, em bemol natural, descamba para o sustenido. Era assim que me retratavas as manhãs que nasciam. Via-se que eras poeta, mas que não entendias patavina da música. A música, mesmo quando lenta, não se resumia assim com tanta calma. Sabias, por espanto desta cidade que, de tanto caírem as folhas, virou uma árvore desnuda. Um tronco minimal e monocromático, sem folhas, nem frutos. E tu que tanto amavas a ramagem das árvores como as cidades de viço!

Estou nestas manhãs sem inspiração para a crónica. Pareço um blackout da Electra. Uma Electra sem a propina do INPS, imaginem. Estou desinclinado para as coisas noticiadas. Os assassinatos deprimem-me. O agendamento da revisão constitucional a quem isso ainda interesse. As fotografias com as caras dos delinquentes pela Internet são o ápice da mediocridade desta sociedade. A saciedade da classe média alta e a cumplicidade com os traficantes, bem como as suas engrenagens, isso sim dava uma reportagem jeitosa. Mas o sol quando amanhece, pelo menos, no lupanar destes cuidados, não será para todos. Faço um parêntesis para saudar o Mito e a Rita que nos trazem projectos de alma, com qualidade superior. No mais, estou a zero e eremita, escravo das horas que me cansam.

Amanhece como uma medida que transborda no silêncio de quando as coisas acontecerem. Nessa resiliência surda, raramente perceptível, de estarem as coisas a acontecer. Já de ti não se ouvindo que arfares ou, no esparzir da tua respiração, o vizinho do apartamento contíguo a ressonar. Ou, por pranto, posto chorarem também os homens, como terá vindo abaixo o céu quando me morreste. Tudo é Nilo. Do sangue que me fervilha ao esperma que acata o destino da fertilidade. Set esquartejando o corpo de Osíris em mil pedaços e esboroando seu fumo pelo deserto infindo para que este jamais fosse encontrado. Triste Set, apesar de raivoso e poderoso, pior que o bíblico Caim, que não conseguiria destruir a resistência do amor e magia da beleza, resumida tudo em Ísis, consorte de Osíris.

Pela rádio, ouço o despertar de um programa musical. O deus que o tempo mede o tempo também se revela na RTC. Logrado o sol sozinho, já sendo lua o que fora pensamento, toco a escrever estas linhas que, de alguma forma, hão-de emocionar alguém. É que as coisas, entretanto acontecidas, se revelam coloridas em forma de dia.



Desacordado animal

E como estou depauperado de ideias novas. Talvez pelos termos de referência sobre um Monumento a Liberdade, a deixar pouca, mesmo pouca, margem de liberdade ao artista. Arre que as forças contrárias interagem nesses corpos. Como estou esvaziado com a criminalidade que esventra esta cidade e lhe come as vísceras. Quem sabe a medo de acordar o animal que se me esconde neste amanhecer vagaroso. Como estou em síndrome de página branca e invade-me a sensação de nítida descida para o chão e para o vão…

(As cores de Osíris representam o amor, a fecundidade e o renascimento, sendo as de Set o ódio, a violência, as tempestade e a guerra)