quarta-feira, janeiro 27, 2010

E no Haiti as pessoas continuam a morrer

(De repente, estou dentro de um congresso. Convidado permanente. Muitos congressistas passam por mim. Uns até leram os meus poemas. Outros, por causa do A Nação, reconhecem as minhas crónicas. A Arte é uma deusa tântrica: tem braços que não acabam e tocam-me as tuas crónicas. Às tantas, tu acreditas nas manhãs que cantam. Morreu Luís Romano, o escritor. E no Haiti as pessoas continuam a morrer.)








Do atavismo das coisas


Talvez para ti, meu bem, as coisas estejam desgarradas umas das outras. Mas, à minha mais que modesta percepção de tudo, isto anda tudo ligado. Este paradoxo azul que dá voltas nos desafia para um destino comum. A borboleta que bate asas na China e a ventania que bordeja nos Andes. O iceberg que se derrete na Noruega e o borbulhar das espumas nesta praia mansa da Boavista. E tu que sorris, como um sol amigo, e o haver Deus (ou mesmo deuses) em algum tempo ou lugar. A ideia poderosa de estar cheio de ar o copo vazio. Por isso, meu bem, permite-me esta lágrima pelas pessoas que continuam a morrer no Haiti.






Os Condenados da Terra


Releio o livro de Franzt Fannon, um dos lúcidos. Também releio as obras de Jean Ziegler e de Noan Chomsky. Revisito Amilcar Cabral. O que é a esquerda progressista nos dias que correm? Balbucio-te que nem sempre nos é possível metaforizar o discurso. Tão pouco procederia salvar o pensamento. Estarrece-me a realidade dos condenados da terra. O que dói no Haiti não é a morte, condição natural da vida. Diz o vulgo, com empírica sabedoria, que para morrer basta estar vivo. O que dói no Haiti, dizia, é a condição de vida infra-humana da maioria dos haitianos. É constatar que, para além da fome e da miséria, é o mais elevado número per capita dos deficientes físicos do mundo. Estes tempos globalitários, mas nem por isso globalizados e muito menos mundializados, quanto mais humanizados, doem no âmago. Haja Arte para que não nos mate este excesso da realidade!






Tântrica deusa


Dissera, antes de te ver, que a Arte é uma deusa tântrica. Os seus múltiplos braços, ora nos acariciam, ora nos estrangulam. Eu tenho o defeito de entrar numa tela do Mito e gritar para o curioso: “Ó badameco, olha para isto. É de um cristão não entender mais nada”. O jeito é “sensacionar-se”. Sentir-se pela matriz da sensação. O jeito é desconstruir-se para a mensagem que nem sempre vem com a roupagem da lógica. A Arte, sem alarde, não se emoldura em significado. Agora que te vejo, assim, musa de cabelos ao vento. Agora que te vejo, “sensaciona-me” esta quietude.






Let my people go


“Brave, Jean, prennez garde aux choses que vos dite”. As palavras têm peso e ocupam espaço. Usemo-las com parcimónia. E ele que não se visse tanto ao espelho. Antes visse para a gente, para o mar de gente. Para o imenso oceano humano. Almejando que isso fosse “nós”. Suplicando que isso não fosse “Me, Myself and I”. O espelho é disforme para o ego. Deforma-o. Enche-o como um balão. Fá-lo explodir com estrondo. Sob a ovação da multidão…






Você, Brasil


E partiu também Luís Romano, escritor que marcou a sua verve pela denúncia da fome em Cabo Verde. Afinal das contas, tudo tem de partir. Transmigrar para uma outra dimensão. Mas os imprescindíveis deixam um legado, como é o caso. O livro “Famintos” contribuiu não só para gritar contra a fome nestas ilhas, mas também (e sobretudo) para uma tomada de consciência sobre a Independência de Cabo Verde. Devemos a Luís Romano, tal como devemos a Ovídio Martins, a Nação livre e emergente que somos. Filho dilecto desta Nação, Luís Romano morreu no Brasil, país, primeiro, de exílio e, depois, de escolha. Não posso deixar de relembrar os versos de Jorge Barbosa: “Eu gosto de você, Brasil/Porque você é parecido com a minha terra”.






(Nos bastidores de um congresso, onde a vida realmente flui, olho-te longamente. E se nos reencontrássemos na China ou na Cochinchina? Tens cara de quem grama navegar pelos mares da poesia. Ou de quem, ao serão, recita os versos de Carlos Drummond de Andrade. Juro-te que não pretendo emocionar ninguém. E, quem sabe, cá nunca esteve quem ora vos escreve. Esotérico eu? Se as manhãs cantassem, dar-vos-ia, neste dizendo e fazendo, o braço a torcer)