segunda-feira, dezembro 27, 2010

IMPRESCINDÍVEL HINO

Do irrecusável hino que nos faz sonhar

Com tristeza, soubemos do falecimento de Norberto Tavares, de quem éramos amigos e por quem tínhamos enorme admiração. Admirávamos nele o talento artístico e a convicção com que encarava Cabo Verde no Mundo; a forma generosa, mas crítica, com que se permitia às coisas instituídas, quase sempre alienantes. E a nossa amizade por ele se fundamentava na abertura do espírito e na cordialidade no abordar tudo, inclusive os assuntos mais triviais. Quando lançara há muito, muito tempo, o álbum “Volta pa fonte”, afirmação cultural e cidadã de singular transcendência, Norberto Tavares assegurara o seu assento (tónico acento, diga-se de passagem) no panteão dos músicos de Cabo Verde. O seu diferencial rítmico, melódico e poético, bem como semântico, estava ali para ficar e marcar várias gerações sobre a necessidade de se modernizar pelo afirmar das origens e da identidade. A metáfora do amor à mítica Maria, de lata de água à cabeça, palmilhando os caminhos da fonte, continua a marcar o nosso imaginário e a determinar a nossa férrea vontade de mais Caboverdianidade. Saudamos o amigo Manuel Veiga que, então ministro da Cultura, rebaptizou, na Cidade da Assomada, o Centro Cultural Norberto Tavares. Saudamos também o cidadão Carlos Tavares, emigrante nos Estados Unidos da América que doou um rim a Norberto Tavares numa arriscada operação de transplante. E gostaríamos que, por ocasião do 35º Aniversário da Independência Nacional, Norberto Tavares recebesse a condecoração do 1º Grau da Ordem do Vulcão, entre tantos artistas agraciados. Afinal, tratava-se do autor de “Nos Cabo Verde de Esperança”, irrecusável hino que nos faz sonhar!

Eleições com rosinha e outros que tais

Prepara-se a procissão para sair do adro. Em verdade, os cães, por sacrilégio, de há muito latiram ao latinório. Egrégio momento, não fosse esse de promessas vãs e de sacos de cimento por votos. Pela missa, presumem-se raios e coriscos, que tal areal, quando entrado pela rua, ninguém o segura. Enxurrada de povo, dir-se-ia a de água, é coisa mesmo séria. Povo desaguando no estuário do processo histérico. Já se viu isso antes, primeiro, ao tempo em que acreditávamos na revolução e, depois, ao tempo em que embarcamos na democracia. Agora, somos mais lúcidos. Menos bentos com a República. Ninguém faz vénias aos venais. Ou faz? Eleições com rosinha e outros que tais desafinam qualquer um. É nosso caso. Por modo que descrer nas manhãs que cantam e essas lerdas é também uma forma de ser e de estar em tudo. Ou, consequentemente, em nada. De sorte, sendo sempre cidadão, é-se poeta consequente. Apoiando causas, verte-se o suor e derrama-se o sangue, como se expressa em palavra, mas não se matricula para o exame da polis. Há uma direita sinistra que se disfarça e se recauchuta, mas que, trocada por miúdos, não engana mais ninguém. É preciso dar-lhe luta...antes que anoiteça.

O Processo

Lia-se Kafka, pela derradeira vez. Vasculhava-se n´ “O Processo”, a ver se o que acontece por cá era menos absurda que a sorte de K, julgado e condenado por uma engrenagem maior e invisível. Onde é que já se viu o Estado de Direito Democrático, que se arvora atento aos Direitos Humanos e tudo, permitir confissão de preso sob tortura ou sob efeito de droga? Ou de acção processual acelerar-se por interesse de um acusador público, subvencionado claramente por um maquiavélico comerciante da praça? Ou mesmo a promiscua relação entre uma testemunha, entretanto reclusa de outro crime, receber de um procurador o livro de Dan Brown, simulacro de alguma corrupção ou chave de um mistério que, a todos os títulos se revela promíscuo, senão mesmo corrupto? Pior do que isso, a escala de um juiz da mafiosa troika – ficando ainda a recorrente pergunta de quem julgará os juizes – para ajuizar um jogo de cartas marcadas e de trunfos na manga. E, ante que anoiteça, é preciso lhe dar luta...

2011

Ei-lo à porta. É hora de nele entrarmos. De forma nova e inovada. Sem a corrupção da Justiça. As grandes questões do nosso tempo serão: uma agenda verde para Cabo Verde, uma agenda de economia da cultura e uma agenda da economia solidária. Por um desenvolvimento sustentável...porque um mundo melhor é possível. Ademais, meus caros, muito paz, muito axé, sarava & morabeza!

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Crónica de Natal

Crónica de Natal

Em tempo de Natal, está-se com a sensibilidade mais desperta, tão desperta e aflorada, que não se consegue fazer uma crónica normal. Ainda que livre, escorreita e navegável, a crónica exige alguma racionalidade e não se confina ao velejar pelo oceano incerto, ora para o sotavento, ora para o barlavento, havendo esse mar azul para o sem porto de alguma chegada. Naturalmente que, tal o pensamento, serei sempre livre para escrever sobre a trivialidade das compras de Natal, como se a natividade de Jesus fosse uma conspiração capitalista em que até os «condenados da terra», mercê do regabofe e da consoada, se empilham na procissão do consumismo. Poderei também, já que o sentimento é mente mais que coração, discorrer sobre a paz, a reforçar, e a fé, que nunca morre, de a campanha eleitoral aí à porta não se resvalar para a crispação, ditame de uma baixíssima política. Não podendo fazer crónica normal, posto haver sempre a tristeza da ausência da minha mãe, estúpida lei da vida alguns não terem mãe pelo Natal, fica daqui para o meu leitorado (menos, Filinto Elísio, muito menos, companheiro) um abraço pela fidelidade e uma certeza de não me terem de aturar, como cronista, em próximo futuro.

Toalha de mesa de Natal

Até o simples halo, suspiro de nada, é poesia,
teu olhar de passagem, coisas assim fugazes,
não precisam ter luz, apenas sombra, que encantam.
Às vezes, é um dizer marginal, teu subtexto somente,
pois o não dito diz tudo, mais que o suposto. É cotovia
pelo modo que canta e pela moda que voa, seu esvoaçar.
Outras vezes, é vento que bole, tão breve que leve a folha.

Nuance de vinho na rolha, a telha, grená, de argilosa,
tanta lembrança que lhe trança o linho, toalha de mesa
eis o Natal agora sem ti ao brilho desta Árvore,
e ao que te soletraria perdido, em lágrima, poesia!

Em tempo de campanha

Leio, com indignação, o que um jornal nos permite só porque estamos «em tempo de campanha». Em democracia, a imprensa é livre, mas não pode tudo. Nenhum poder pode tudo, aliás. Até o Parlamento se incorre à dissolução e o Presidente ao «impeachment», bem como o juiz pode ser julgado. Só em regime fascista e/ou totalitário aparece uma imprensa (próxima aos «iluminados») sem limites. Ademais, sem uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, o próprio Estado democrático pode acabar avariado, escreveu o filósofo alemão Jürgen Habermas. Afora a «boutade» dessa pasquinada em formato de jornal, e já agora não se deveria também permitir campanha eleitoral, com carro de som (que não pode tudo, carago), à porta da Maternidade, o Natal vai entrando e se entranhando aqui aos poucos.
Personalidade do ano

Um dos disparates (e não são poucos) da imprensa é escolher, nesta altura, as personalidades do ano. Pior do que isso, só certas condecorações em que os medíocres distribuem o «faz de conta» em detrimento do real mérito. Entrementes, este ano, igualmente por estarmos em tal tempo, não se melindre a airosinha CNE, a imprensa não deveria escolher fulano, beltrano ou sicrano para o «faz de conta», até porque a personalidade do ano parece ser claramente Julian Assenge, com o seu blog Wikileaks. Os vazamentos de documentos confidenciais, não só revelam os meandros de como se enformam decisões, como informam à nova sociedade civil global sobre as teias urdidas neste mundo, em que nunca Maquiavel foi tão actual.
















quarta-feira, dezembro 15, 2010

Temporão

Temporão

Essa versão da democracia como a panaceia dos nossos males da alma? Essa política da raiva, do fel e do agressivo? Essa espécie de «cloaca máxima», que em Roma Antiga drenava os esgotos, aqui aos do pensamento? Não me façam rir. Esse discurso cartesiano, da lógica barata, da ladainha de sempre? Convenhamos que merecíamos melhor neste tempo de estio. Acreditá-lo nem por isso. Tão pouco creditá-lo. O Livro diria: «tanta vaidade e o vento que passa». Aplaudo a retirada dos outdoors, todavia. Ao menos isso, companheiros. Eram feios, sovinas e avarentos. De enorme mau gosto. O pessoal não aprendeu que a estética poderá fazer parte da política. Ou talvez pense que somos «o admirável gado novo». Uns simplórios que se satisfazem com a vulgata. Em verdade, não o somos, acreditem…

Quando se alvoroça

Às vezes, na quietude, o alvoroço destas árvores. São as acácias da minha rua, umas antigas, outras nem tanto. As de outrora me recordam a infância (tua trança ali, primeva transa acolá). E as de agora, se calhar por noviças, nem de alhures me lembrariam a nada. Se te contasse dos malucos do meu tempo: Bernas que também era epiléptico; Fátima Doida, elíptica como ninguém; Soraya, olhos grandes e perfume de eucalipto. Mas não, eles agora inexistem e o texto, sempre fora do contexto, reedita as suas sombras. Deve ser do troço de tais árvores. Ou arvora-se em tua face o corte diagonal do tempo. Sabias que a neblina não é inocência em estado puro? Tudo se liquefaz – do retrato de Che à Constituição Nacional, passando, naturalmente, por esses altares de se ajoelhar. E faz-se lua. Algo mais que o luar. Enluarar pode ser o infinitivo de assaz verbo. Quão intransitivo. É mais do que se fazer à lua. É ela, toda nua, a fazer-se em mim. Um dia, tu vais entender…

De vez em quando

Apanha-me deste lado o fastio ao passear por estas ruas. Acontece-me, assumindo amar cada esquina e cada luz ensombradas, por tão lúgubre raiar, que se incendeia hoje aos homens da cidade. Apanha-me deste lado a náusea de encorpar essa pasmaceira com que as horas vão pingando, torneira a gotejar em dia de água, ora à míngua de luz eléctrica, ora à bonança de um estio reinante. Haverá gente, que não este a escrever, resignada ao paulatino assalto dos facínoras. Gente resultante do que, à 25ª hora, se ordenha diria que de fartos benesses e doutros agrados de quem ordena. Apanha-me deste lado o que, por pudor e recato, se recusa a gritar em mim. Tempo pródigo de sair por aí…

segunda-feira, dezembro 06, 2010

INFERNAL OUTRO: ESSE MISTÉRIO


«Tenho o micróbio da liberdade e da escolha ardendo em minhas veias»
Airton Monte


Céus, que há seca na Amazónia

De vez em quando, vendo o noticiário pela televisão, reparo que o mundo não está saudável. Ao meu lado, o meu pai pergunta: «É o planeta que não está bem ou somos nós que agora sabemos de todas as suas mazelas?». Cogito ser isto e aquilo, as duas coisas. Gilberto Gil, músico e sábio, diria que hoje a Terra é pequena, porque o Mundo tornou-se grande. Nas antípodas, o Mundo antes era pequeno, quando enorme era a Terra. Talvez seja isso. Entrementes, a variável da depredação ambiental terá enfurecido o planeta e a Europa neva antes do tempo, os furacões perdem o seu norte e as enchentes perigam a Austrália. Céus, que há seca na Amazónia! Outrossim, o sistema de informação dos Estados Unidos, como outrora o seu sistema de segurança à fúria do Ben Laden, desmorona-se à «pirataria electrónica» da Wikileakes e já não se entende mais nada. O que afinal se revela é o que todos sabíamos e o que todos os países e estados, dignos do nome, fazem: cuidam da sua «inteligência», dão seguimento à agenda do Outro. E Jean-Paul Sartre ensinava: «O inferno é o Outro». Nada mais evidente e assertivo. Debalde, em Cabo Verde entrámos na corrida eleitoral. Espera-se, sem ilusões, que a disputa pelo voto se faça com lisura, com candura e com responsabilidade. Não que haja razão objectiva para esperar tanto civismo, mas, que diabo, a esperança não morre e, um dia, o pessoal há-de perceber que o «infernal Outro» fundamenta a Democracia. Não é a Constituição que se copia, o modus operandis que se importa, mas a Cultura de ser e de estar perante o «infernal Outro» que existencializa a Democracia. Espera-se, sem ingenuidades, que o pessoal entenda a sabedoria guevariana de «endurecer-se sem perder a ternura». Vale a pena tentar, pois que o mundo não está saudável. O pequeno mundo destas ilhas deve sofrer de hipertensão, de esquizofrenia, essas coisas. De repente, a barra pesa e o bicho pega. E quanto à pergunta do meu pai: «É o planeta que não está bem ou somos nós que agora sabemos de todas as suas mazelas»…os deuses devem estar loucos!

Eis que o dia amanhece azul

Dou o meu modestíssimo contributo para coordenar a edição do livro de um «velho amigo». Aprendo muito em reler os seus textos e apercebo-me que, como nos ensinou Amílcar Cabral em «A Arma da Teoria», importa teorizar sobre a caminhada prática, sendo mister, por motivos de precedência e de providência, conceber a relação, senão mesmo a interacção, dialéctica entre a teoria e a prática. Há uma prática transformacional em Cabo Verde e problematizá-la, com ciência e consciência, tornou-se o desafio do momento. Encanta-me neste livro a visão sobre os desafios do futuro. É de alguém que já leu e matutou profundamente sobre «Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro», de Edgar Morin. Implicitamente, há nestes textos, o aprendizado de uma navegação por um oceano de incertezas para transformar Cabo Verde num arquipélago de certezas. Para que os dias nos amanheçam azuis…

Longeva idade

Gosto, porque me acalma, ficar na quietude (e no arfar) de quem se ama, escutando a vital batida do seu coração. E de pensar como gostaria ela de escutar um poema de Mia Couto. Pode ser esse que, bem sussurrado, reza:

Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio de conversa.

Esse descer de pálpebra
não é idade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

Pensar que o ser humano, este mistério simultaneamente físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico, grande dádiva da Natureza, merece a paz, o amor e a bem-aventurança. Meço a tensão arterial, tomo os meus comprimidinhos e arranco o dia com uma marcha pelo quarteirão, um banho frio e uma banana. Entra-me, sem pedir licença no pensamento, a frase de Freud: «Se decidir parar de fumar, de beber e de fazer amor, na verdade não viverá mais tempo; é a vida que lhe parecerá mais longa». Fumar não recomendava, beber só moderadamente e fazer amor, sendo na quietude (e no arfar), é a terapia da longeva idade. Poesia. Qualidade de vida…

terça-feira, novembro 30, 2010

Dos livros


Sequestro existencial

Dois livros me encantaram pela desmistificação do poder dos homens e pela essencialidade humana - «Os Sequestrados de Altona», drama de Jean-Paul Sartre, e «Ninguém Escreve ao Coronel», romance de Gabriel Garcia Marquez. Ambos radicalizam a forma como os homens (não) sabem ser e estar diante do poder (político, económico, social, religioso, outro). A metáfora da miséria orgulhosa do Coronel é paradigma dos homens em face ao destino. Diante do calvário de nascermos iguais e da democraticidade de morrermos todos, o intervalo em que vivemos é de si uma dialéctica no olhar dos outros. E no nosso olhar ao próprio espelho. Em verdade, somos sequestrados da vida, na sua luz e sombra. E em tese, ninguém é diabo ou santo. Todos somos (tão frágeis) dramaticamente humanos. Com o vosso perdão por este intróito de anti-História. Ou apenas este rasgo de estórias que vão compondo a História. Ou, ainda, vice-versa…

Valorizando a História

Faz bem ler pela madrugada, quando já anda tudo a dormir. Faz bem, esquecido das horas e das desoras, remoer páginas inteiras no barulho monocórdico de um relógio. Petit bruit, como diria alguém que me sussurra o espírito. Remoer livros. Por estes dias, tenho estado a ler um livro de Laurentino Gomes. Intitula-se «1822» e conta estórias de um período muito especial da História do Brasil. Talvez por ter contado estórias, o livro se tornou num best-seller. Tornando coloquial, senão mesmo banal, feitos que afinal nem foram factos e criando interesse por figuras que a oficialidade às vezes recusa, a obra de Laurentino Gomes marca o seu espaço editorial pela linguagem discursiva e pelo fino, quase imperceptível, recorte humorístico. Pessoalmente, o texto prende a minha atenção pelos detalhes da época (século XIX, no caso), algo que também captei na releitura de «O Senhor das Ilhas», de Isabel Barreno, e de «A Morte do Ouvidor, de Germano Almeida». Estes também contam estórias. Valorizando a História…

Máscaras dos outros

Li também, com vivo interesse, «Máscaras de Salazar», de Fernando Dacosta, e confesso que me fascinou saber o lado humano do ditador português. O homem que, por trás do sombrio e do retrógrado regime imposto a Portugal, soube ser casto e humilde, impondo-se a si próprio um viver sob valores do patriotismo e da família. Naturalmente que, em seus auspícios, floresceram a polícia política mais grosseira e a Concordata que lembrava à Inquisição, com perseguição de cidadãos e aberturas de prisões, de que o Campo de Concentração do Tarrafal é o mais gritante exemplo. Todavia, há também estórias com interesse para além da História, sendo esta, quase sempre, o karma dos contemporâneos. Com mais distanciamento, havemos de encarar António Oliveira Salazar com o desapego emocional (e, quem sabe, sem raiva) com que encaramos o Marquês de Pombal. Admirando-lhe a estátua, eixo distribuidor de Lisboa, encantadora cidade…

Antropomórfico tão-somente

Tudo isso me fez lembrar Lani Guinier, politóloga e autora do inultrapassável livro «Tirania da Maioria», algo que se recomenda à nossa política local. Ela recomendava, apesar de tudo, a releitura da História sem assomos da emoção, nem despiques ideológicos. Qual o encanto de passearmos pela Via del Fiori Imperiale e pararmos, deslumbrados, diante do Coliseu, se os Césares foram o piorio em termos de práticas humanas. Basta lembrarmos Nero e Calígula, entre tantos. Afinal, a figura do temível e sanguinário Napoleão Bonaparte, hoje valorizado pela França democrática, não teria o brilho toponímico e efeméride, nem contribuiria para engrandecer o País. Outrossim, Thomas Jefferson, à sombra do seu genial espírito libertário, foi senhor de escravos e Winston Churchill, símbolo da resistência ao nazismo galopante, era um colonialista de primeira e os colonizados do Império Britânico viviam sob a indignidade e servidão. Há que contar estórias para que a História se proceda, sem fatalismo, mas com o seu inexorável sentido antropomórfico, inclusive de ser o homem o lobo do homem…

segunda-feira, novembro 22, 2010

Tempo, tempo, tempo, tempo (III)



Remanso

ter um livro para ler
e não o fazer

Fernando Pessoa

Aprende-se que ficar na rede (sem pensar em nada), nessa metafísica bastante e bem pessoana, é uma delícia. Balançar, mas ao de leve, não fosse o cronista, em desarranjo, transmutar o bulício da vida. O desassossego apenas e tão-somente de ouvir a morna “Mar Azul”, com Cesária Évora e Marisa Monte. Ao tempo dos alquimistas, o engenho e a arte eram uma só ciência. Tenhamos consciência disso. E o pensamento, como outrora, sendo afago do remanso. E, se tanto, de a voz, que será tua, a recitar uns versos de Adélia Prado. Uma delícia, carícia quase...

Cronista 

Está na cara que não é nada fácil a vida de cronista em Cabo Verde. Não deve ser fácil o metier em qualquer outra parte. O condicionamento dos outros. A alteridade em nós e nos outros. O caos das identidades. As transposições, as leituras transfronteiriças. Uns querem ler crónicas de “belas letras”, com floreios literários ou de novela, e nem sempre tenho pachorra para escritor. Outros demandam que afronte a vida política nacional e dê opinião sobre isto ou aquilo, este ou aquele, o que cada vez menos me anima. Quando não se espera de mim coisas mais estapafúrdias, como seu eu tivesse compromissos com a chatice do processo histórico. Não é raro sentir-me como uma arma de arremesso, karma dura e neurótica. E eu que apenas queria escrever, a cada momento, o desvão das minhas lembranças?

Património Imaterial

Cabo Verde, que tem na Cidade Velha um lugar classificado como Património Universal da Humanidade, poderá ter outros sítios com tal estatuto: o antigo Campo de Concentração do Tarrafal. Ou, então, a Cidade de São Filipe. Ou, ainda, a Baía do Porto Grande. Mas também poderia candidatar-se ao reconhecimento da Unesco com a Morna, o Batuque ou a Tabanka. Candidatar-se ao Património Imaterial da Humanidade, mais precisamente. Quem sabe, se com a secular técnica de feitura da aguardente de cana. Ou com as Bandeiras do Fogo. É tudo uma questão de atitude. E, sobretudo, da capacidade de argumentação sobre os valores excepcionais e diferenciais dessas manifestações culturais e de como se integrar a um selecto grupo de 232 monumentos “intangíveis”. Na semana passada, uma quarentena de actividades tradicionais ganhou o status de património da humanidade da Unesco, entre elas a acupunctura chinesa, o flamenco espanhol, a arte de domar falcões na Mongólia e a de produzir biscoitos de gengibre na Croácia. Chegou a hora de pensarmos em tudo isso...

Brasil – Cabo Verde

Leio (e recomendo) a leitura de “1822”, de Laurentino Gomes. As circunstâncias da Independência do Brasil remetem de alguma forma ao passado em Cabo Verde, nesse mesmo período. Entendendo esse recuo, entenderemos outras realidades que são nossas e que se desfiam, incógnitas, mas não anóminas, sob as nossas percepções. Em Cabo Verde, houve sim um movimento independentista de associação ao Brasil. Era uma parceria estratégica. O ethos foi sufocado, como foi aquele de Angola igualmente de associação ao Brasil. Quem sabe se, ora em tempo de parceria estratégica, não nos afronte a necessidade de complementar o arquipélago ao continente. Incontinente direi que há espaços que almejam o seu norte e há aqueles que precisam do seu sul. Sem desnorte para os nosso interesses nacionais...

sábado, novembro 20, 2010

Os alquimistas estão chegando

Nem tudo o que reluz é ouro. Reluza, em nosso pensamento, o vão das coisas. Reduzam ao nada os exuberantes catedrais. A grande cidade. Pó, simples pó, as torres, os obeliscos e as muralhas. Ó grandes impérios que não passam de hiatos. Esboroando no deserto e no além, as vozes diáfonas dos deuses. Tudo não sendo eufórico, nem luminoso. Tudo não sendo o sentido das coisas. Os alquimistas estão chegando. Vamos à desdita de transmutar os metais menores que ouro. Assumir a degradação dos diamantes. Eles não são eternos. O elixir de uma certa vida. A que se assume alteridade na nossa fragmentação. E das nossas verdades estes ladrilhos que vamos sendo.

sexta-feira, novembro 19, 2010

Exercício de contraste

Naturalmente que todos temos as nossas escolhas. Temo-las por razões diversas. Às vezes, por convergências ideológicas, outras vezes por pragmatismo. Isso, sem falar dos interesses, já que a política perspectiva interesses (de grupos e de indivíduos) no espaço e no tempo. Mas quase sempre precisamos de mensagens claras para ajuizar e gizar. Para que nos reflitamos no espelho, é preciso que este não seja embaciado. A face clara das coisas, de que somos ao fim e ao cabo.

Cabo Verde vive um momento pré-eleitoral pautado por uma enorme inflação de mensagens políticas, umas perdendo eficácia comunicativa e outras não ganhando inteligibilidade, aos olhos dos destinatários. Por se tratarem de umas eleições marcadas pela bi-polaridade partidária e pela comparação do perfil de dois partidos em disputa, os discursos para a opinião pública deveriam ser, a nosso ver, mais claros e assertivos, sublinhando contrastivamente não só as suas respectivas características ideológicas, mas, sobretudo, as suas obras enquanto partidos que já governaram o País.

A par dos partidos, não seria incoerente também o contraste entre os dois líderes. José Maria Neves, actual Primeiro-Ministro, e Carlos Veiga, Primeiro-Ministro nos anos noventa, que tiveram o raro privilégio de servir, aos 41 anos, como chefes de executivo de Cabo Verde, no quadro constitucional da democracia multipartidária e, nesta condição, beneficiar, ambos, de dois mandatos, podendo, nas prerrogativas legais que lhes foi facultado pelo regime, mostrar as suas capacidades de liderança, de patriotismo, de gerir o bem-comum e de gerar prosperidade para o país.

Como sairíamos mais a ganhar, porque mais esclarecidos, se a pré-campanha assumisse um diapasão diferente, numa linha de mensagens (que fosse dos outdoors aos tempos de antena televisivos e radiofónicos, passando pelos discursos nos eventos partidários) com dados, os mais objetivos, respeitantes ao cenário dos resultados ao fim de cada um dos mandatos. Ou seja, os diferentes sectores comparados em 2000, fim dos mandatos de Carlos Veiga, e em 2010, fim dos mandatos de José Maria Neves.

Os tempos são diferentes. Alguém há de querer comparar tempos dispersos e distantes. São razões válidas e aceitáveis. Ninguém detém verdades. Tão pouco detém a Verdade. Ao exercício de contraste...pois, com certeza.

terça-feira, novembro 16, 2010

Poema dos sóis laranjas

(Pôr do sol é um poema que se evade de quem o pensa)

Em certas horas, o poema
evade-se de quem o pensa
e percorre-lhe poentes.

Mau grado por espaços,
vem ele metafórico
(seu fonema)
para os tempos.

De a palavra ter-se ali,
pela clausura dos versos,
textual, mas incontido recluso,
no só soletrar-se em fuga...

Dela, mais que à coisa,
o pousar, mesmo calada,
seu vôo inteiro pelo vão
seu tudo ladrilhado
de mim em tanto espelho...

Dela, que nem ao corpo,
sua sintaxe, tanto que arde
como que parte ou regressa,
ultrapassa o sol de gatear
semântica em gota de água...

(Os poentes, seus cambares...ó cidade)

Desgovernado, o poema
é mais que procura, alucina
pensá-lo em seu transbordar
e sua loucura ensina
poentes sem ambares azuis,
nem sóis laranjas de certas horas...

Filinto Elísio

domingo, novembro 14, 2010

Vila Rica de Quartzo

     A língua é por essência a ferramenta do encontro
Autor que desconheço

Nosso quartzo 103

Como um pêndulo, voltamos sempre à pedra que nos é preciosa. Antes, homenageando Oscar Niemayer. Este ano, a pretexto das letras. Mas, em verdade, porque em finíssima estampa, é uma cidade que a mim descortina o teu sorriso, mesmo quando chove na pedra. O teu sorriso que me encanta. Em alteridade, que os ladrilhos do espelho quebrado de mim permitem. O poeta Guilherme Mansur, diria “vista do quarto/de tanta pedra/quase me quartzo”. No saguão do Hotel Casa Grande, o movimento é grande de partidas e chegadas. Partida do IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e chegada para o Fórum de Letras de Ouro Preto. E chove. E tu sorris para o quartzo da minha alma...

Encontros

Os encontros de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa tornaram-se o maior e o mais sistemático dos eventos sobre as “africanas”, realizados no Brasil. O I Encontro foi iniciativa da Universidade Federal Fluminense, seguido pelos encontros sediados pela Universidade de São Paulo em 2003 e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2007. Para além dos professores brasileiros e de toda a lusofonia, os encontros têm sido momentos para a reflexão e para o debate de investigadores, estudantes, escritores e curiosos das letras com a África por pano de fundo. Desse ponto de vista, a Associação Brasileira dos Professores das Literaturas Africanas, com a participação de várias instituições acadêmicas e de várias personalidades universitárias, representa um dos grandes ganhos para o estudo das literaturas africanas, algo que determina um incremento incomensurável para a afirmação e para o intercâmbio entre os países de expressão oficial portuguesas e as “belas letras” que neles se fiam as respectivas culturas.

IV Encontro

Este ano o IV Encontro, realizado pela PUC Minas, pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Ouro Preto aconteceu na cidade de Ouro Preto, outrora Vila Rica com o seu esplendor de arte e cultura, ora com o estatuto de Patrimônio Mundial da UNESCO. Perspectivar a África a partir de Ouro Preto foi feliz e profícua idéia. Por conseguinte, esse IV Encontro pôs-se a refletir sobre repertórios culturais e literários da África, problematizando-os em seus contextos vários e em suas correlações diversas. Os eixos temáticos – dez ao todo – enfatizavam a pesquisa e o estudo sobre as inúmeras configurações e formatações, sem descurar dos caminhos, da literatura africana. Para além destes, várias mesas com diálogos, uns impertinentes, outros pertinentes, com escritores, professores, estudiosos e outros, não faltando as obras várias de título e de editora, em lançamento e exposição livreira. Uma stravaganza. Um sucesso. Os objetivos, creio, foram alcançados e o projeto dos encontros, dizem os mais entendidos, ficou, não só consagrado, mas qualificado. Exemplo disso: a criação formal da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos – AFROLIC.

Fórum das Letras

Igualmente nessa cidade síntese da arte colonial e da marca cultural negra, não apenas pela expressão de tanta história, mas pela exuberância de assaz patrimônio, aconteceu (em articulação ao IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa), o Fórum das Letras de Ouro Preto. O evento, que já se agigantou para ser dos maiores do Brasil, é coordenado pela Universidade Federal de Ouro Preto. Este ano, para homenagear os 300 anos de Vila Rica, o Fórum também teve a África como centralidade. Toda a um manancial de eventos - Programação Principal, Fórum das Letrinhas, Literatura em Cena, Ciclo Bravo! de Jornalismo e Literatura e Via-Sacra Poética, além de exposições e outras manifestações artísticas e folclóricas – com a derivada no continente africano.

Chuva de estrelas

Embora eu estivesse no Fórum para ver Adélia Prado, João Ubaldo Ribeiro, Ferreira Gullar e Luandino Vieira, fui também apanhado para palestrar no painel sobre “A leitura e a escrita como experiências de alteridade”, realizado no Cine Vila Rica, sob coordenação do Jaime Prado Gouvêa, contista mineiro, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais. Nesse nosso painel, também o escritor Flávio Carneiro disse que. “O conto é impregnado de experiência do outro”. Acanhado diante do público, quis eu que a escrita fosse “o meu outro como um poliedro que me impõe a identidade do eu”. E tu, da platéia, sorrias. Por alteridade...

sábado, novembro 13, 2010

Ouro Preto

Foto Genivaldo Cordeiro

quarta-feira, novembro 10, 2010

Meu pai

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro

Ferreira Gullar

segunda-feira, novembro 08, 2010

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Puro incêndio

Incendiário, eu? Creio que não, meu coração. Para mim (e neste momento), o pôr-do-sol é o incêndio já valendo a pena. Os seus tons de amarelo e vermelho; as suas nuances de violeta – tudo a esbater no anil do céu e na turquesa do mar. Faz-se, assim, o construto da minha emoção. E, compondo, em assaz linha, a paisagem (da janela da minha alma, pois claro), acrescentaria um pássaro deslizante a caminho do poente e recitaria (em balbucio mental) o poema “Cinzeiro”, de Jorge Barbosa.

Jantar “chez Nazareth”

Sentir-se quão frágil a vida. Frágil, contingente e “debole”. Por isso mesmo, bela. Luz afoita em seus apagares. Outros esgares que, podendo, sejam de amores. Noite de vela acesa e leve, crepitando, também frágil, sobre a corola dos falares. Diáfano aroma de cachaça mineira e de um canapé em flores e frutos. E, como também és bela, no que recusas de essencialismo e no que assumes de existencialismo. Sem aparato, apenas de sopro. Sem arquétipo, mas de corpo inteiro. Digo-te ser a curva mil vezes mais certa que a reta. Provam-na a errância, o retorno e o buraco negro. Provam-na a política turva que é também conversa, em ceia de pão, vinho e palavra. Quão frágil (e fugaz incenso de ópio) esta vida. E o bater das horas. Com chuva lá fora...

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Uma mulher está em vias de ser apedrejada até à morte no Irão. Chama-se Sakineh Mohammadi Ashtiani. Posso ficar calado, aderir-me aos “animais de capoeira”, como descreve Armênio Vieira sobre os homens inertes? Posso fingir, pobre de mim, desconhecer a barbárie de um Estado Leviatã ou de um Anjo Exterminador que permitem apedrejar uma Mulher até à morte por (leviano talião) da Justiça? Posso, homem de brio humanitário, compactuar em mim com um regime da excrescência, onde o Poder prende, tortura e mata? Posso, para o sono dos justos, aceitar na minha simples fala o fanatismo diabólico de quem se arroga autoridade divina?

Pedaços Dele

A pena da morte, onde quer que seja ou esteja, é o maior atentado à Vida. Aos Direitos Universais. À Humanidade. Ela representa o avanço da barbárie sobre a civilização, merecendo a condenação dos homens e das mulheres de “boa vontade”. Não se trata aqui de condenar o Irão tout court. Trata-se de deplorar e de levantar a voz, por miúda e marginal, contra as execuções dos seres humanos, contra um atentado físico e mental extremo. Contra a dor física de matar e o sofrimento psicológico da morte anunciada. Contra o permitir o diabólico poder aos humanos para serem o Deus da Morte, ao invés de sagrados filhos do Deus Maior. Sem apedrejamento, nem forca. Sem cadeira elétrica, nem injeção letal. Sermos o cataclismo do Bom Deus. Sermos fragmentos e estilhaços. Cacos do seu Cálice em quebra. Pedaços Dele...

terça-feira, novembro 02, 2010

Um santo em mim

Tempo da Cabala

O amigo Luís Geraldes, artista plástico português, criado angolano, mas a viver na Austrália, fez-me a pergunta. Era uma inconsequente madrugada no «Galeto», em que eu e o meu editor íamos aos pregos com mostarda e às cervejas bem geladas. E a pergunta era: o que revela o perfeito equilíbrio entre o céu e a terra, a água e o fogo? Talvez quisesse ele que a minha resposta entrasse na Ordem do Templo, mas soltou-me ser a Paz tão-simplesmente, essa coisa que lhe leva o vento de Lisboa e que não pára em tempo da Cabala…

Do eLeitor

Não o chamaria de eReader, pois não tomo por empréstimo à língua inglesa o que esta flor do lácio também tem. Chamo-o de eLeitor, não eleitor, note-se, que vai às urnas votar, mas aquele que navega e lê os meus textos digitais. Por conseguinte, o meu eLeitor, devidamente identificado (nas antípodas do anónimo, que é apanágio desta parvónia), querendo saber o porquê de textos herméticos, senão mesmo criptográficos. Faço-o entender que estar na eterna idade de ver o luar, acto simples e singelo, nada tem de misterioso. Ver tão-somente para acreditar que a vida vale pelas coisas evidentes. O luar pelo luar, sem outro navegar…

Cidade novembrina

Novembrino mês. De ameno tempo. Outrora, novembrino de estio e de fastio. Agora, o cio da terra é das águas. E a leve brisa que bole as árvores da minha cidade? E os acordares, ainda para o sereno, que esta metrópole, a ser, concede? Os cantares de galo numa urbe com Bolsa de Valores! Tens o corpo disforme, ó Praia. Malha mais estranha. A mim entranha tua alma novembrina. Os que te esventram, por estupro e por rapina, não te saberiam no lado de cá. Olho-te do mar aos montes. Lânguida. Sensual. Liiiiiinda. Para o desgosto dos que te desamam. Apesar do lixo e do luxo, dos thugs e dos vips, liiiiiinda. Que ninguém ouse matar a tua silenciosa estética de estares assim no abraço atlântico…

Bashô um santo em mim

Releio, com calma e vagar, os versos de Maria Helena Sato, de quem sou amigo e admirador. São versos deliciosos. De quem sabe colher o melhor perfume de uma flor de três pétalas: Brasil, Cabo Verde e Japão. Gostei particularmente do livrinho «Bonsais e Haicais», em papel 100% reciclado de embalagens Tetra Pak. Às tantas, Maria Helena escreve:

Granizo
destruiu meu teto.
O sol me vê
estendida,
quase desistindo
de secar.

Fui assistir à apresentação dos livros de Maria Helena Sato, aqui na Cidade da Praia, e encantou-me esse assumir modernidade poética no imperceptível das coisas. Ricardo Silvestrim, outro poeta bem-aventurado, diria: «Bashô um santo em mim». Total…

Meu Brasil, brasileiro

Dou comigo vibrando, de contente, pela vitória de Dilma Roussef nas eleições presidenciais brasileiras. Eia, para Você que se levantou cedíssimo para ir votar, aquele abraço. Em verdade, para mudar o mundo. Estou orgulhoso de Você. E não é que o mundo mudou? O Brasil, que se afirma como quinta maior potência mundial, tem agora uma mulher na Presidência. Antes, já era um ex operário e ex sindicalista. Agora é uma mulher.

sábado, outubro 23, 2010

Luar

Acontece. Sabe tão bem gostar de ver o luar.

Com o olhar de homem mais maduro. Na linha daquela linda morna de Eugénio Tavares, em que o amor se lhe afinava no devagarinho e no tal entardecer da idade. Sem o cavalo largado e a relinchar de tanta juventude. Mas também sem as velas pandas de um veleiro em vento ausente. Apenas sereno, na verdade de chamar o «petit gateau» de bolo de chocolate e na afoiteza de ver a lua a se derramar neste momento a sua condição de astro pela noite.

Eu, por mim, me desculpando pela imodéstia, estou bem no ponto. Nem conto isso de folha em branco. Mais precisamente do monitor em branco. Tenho a pauta cheia e as sugestões são muitas. Uma amiga quis que eu escrevesse sobre a chuva. Outra sugeriu que pusesse no meu texto umas barragens retendo água. E não faltou quem quisesse uma escrita mais consequente, de companheiro das causas e das bandeiras. Mas, repito, estou no ponto de rir de mim. E de tudo…sem maldade nenhuma.

Sabe bem o estar assim, reconhecendo, sem drama, mas com calma, estarem estas mal traçadas de hoje meio complicadas. Tendo parco talento (e estro tão-pouco) para outra verve que não esta, escrevo apenas isto que me vai na alma. E faço-o nos meus limites. O nome que encima esta crónica é de uma famosa canção de Gilberto Gil. O mago diria que «a gente precisa ver o luar».

Quem sou eu? Não me conheço crente, nem descrente. Sou parte do nosso relicário…resguardo-me nestas margens de pessoa comum e me guardo, em metade rio das nossas vidas. Aliás, me vaticinara tudo isto uma baiana Mãe de Santo.

Os pratos que eu gosto? Em termos do comer, me apraz o trivial chicharro grelhado, arroz de feijão e molho escabeche, ou então uma barriga de atum (também na grelha), batatas cozidas e com azeitonas grandes. Obviamente, salada de alface, pepino e tomate, regada com azeite extra-virgem e o vinagre balsâmico. Pão, de todo o tipo. Um luminoso ovo estrelado, de vez em quando. Tudo disposto em prato grande, com aqueles desenhos de Miró. E, em termos do beber, chá gelado ou vinho tinto (para o fresco e sem frescuras).

Os poemas que leio? Gosto de tudo, desde aqueles versos de Neruda aos versos nas camisetas da Feirinha, passando pelo teu silenciar que me invade na paz de Alberto Caeiro. Imagine, fosse eu aqui listar os poemas que gosto e leio! Prefiro falar sobre as praias desertas ou as montanhas intermináveis. O homem banal tem cada uma!

Qualquer dia, saio a campear por aí, que o céu é grande e o mundo é largo. E a glória, diga-se por vezes o seu viés, é poder campeá-los. Entrementes, ter coisas e causas pelos caminhos, sobreviver aos vendavais e à calmaria, regressar a uma espécie de começo mesmo que nada nítido ao espelho. Qualquer dia, sou de viagem. Filosoficamente, já sou vadiagem…

Poderei nesta idade, de homem a caminho dos cinquenta, abrir-me ao jogo do destino? Fazer o quê se me alumia no coração a chama de uma estranha paixão? Estou idílico, leviano ou apenas sendo eu nesta eterna idade? Em verdade, nem sei. Nem interessa sabê-lo. Mas sabe tão bem gostar de ver o luar.

Bem, vou dormir o sono dos justos.

terça-feira, outubro 19, 2010

Dos primeiríssimos gafanhotos

Meados de Outubro

O mês vai célere, às vezes seco, outras vezes chuvoso, porém quente, muito quente. E, atento, vejo os primeiros gafanhotos e espero não vaticinem as sete pragas e outros quinhentos. À noite, quando a energia eléctrica dá o berro, já nem tenho forças para injuriar gente, pois importa resguardar a outra energia mental (e a paz de espírito) da resignação e da sabedoria. A silenciosa força de amar. Não voto, nem veto. Leio mais um livro de Manoel de Barros e sei que tu também estás atinada aos pormenores das formigas e abelhas, como estou eu dos primeiros gafanhotos ou estaria um menino do triste cão en passant. E, se madruga em breu, de par em par abro as janelas na afoiteza que o mundo tem lua e estrela, e, de pensamento, o existir se reluz em tal encanto. Quem sabe não sejamos deste lugar, nem deste tempo. Ou somo-lo, posto estarem em pauta os nossos respirares…

Dia Nacional da Cultura

Antes de mais nada, gostaria de chamar a atenção dos leitores para o momento importante que vivemos (efeméride dos 500 anos da Descoberta e do 35º aniversário da Independência), e gostaria de render uma homenagem ao patrono do Dia da Cultura, o poeta, o prosador, o jornalista e o polemista, cidadão Eugénio Tavares. Todos nós somos devedores da sua grandeza espiritual e do seu legado transcendental. Igualmente, dizer que os próximos tempos exigem, em termos de políticas públicas, o reformatar dos mecanismos de financiamento à Cultura, porque os modelos actuais já são ineficientes e inadequados à dinâmica da realidade. Neste últimos anos, podemos dizer que temos bons exemplos deste dinamismo, como as Bandeiras do Fogo, o Carnaval do Mindelo, as Tabancas de Santiago, os Festivais de Música, o Kreol Jazz, o Mindelact, os Raiz de Polon, Cidade Velha e o Campo de Concentração do Tarrafal, para além dos campos performativos entre vários outros, que nos apontam caminhos para a necessidade de um reposicionamento das políticas públicas da Cultura em Cabo Verde. À luz dos novos dados, há que produzir novos marcos que vão da lei de direito autoral até a de renúncia fiscal, passando pela recriação de fundos autónomos da Cultura, para que nossas ofertas culturais e sua cadeia produtiva venham conquistar lugares ao sol neste novo ambiente de fruição cultural que já nos marca.

Tempo, tempo, tempo, tempo (2)

Momento grande e não se pode ficar indiferente a isso. Um mundo melhor sendo possível. Acerca das eleições brasileiras, Chico Buarque diria: «Venho aqui reiterar o meu apoio entusiasmado à campanha da Dilma. A forma de governar de Lula é diferente. Ele não fala fino com Washington, nem fala grosso com Bolívia ou Paraguay. Por isso, é ouvido e respeitado no mundo todo. Nunca houve na História do País algo assim». Emocionante momento: um índio torna-se presidente da Bolívia e um negro torna-se presidente dos Estados Unidos da América. Já antes Harvey Milk, assumidamente gay (e empunhando assaz bandeira), ganhara eleições na Califórnia. Apetece chorar de emoção ver Nelson Mandela, em serena idade, a lançar mais um livro e os mineiros chilenos, do claustrofóbico cativeiro, a serem resgatados. E o Brasil, meu Deus, depois de um operário (que resolveu aos brasileiros as suas necessidades mais básicas de comer, morar, trabalhar, estudar, ter luz e saúde), ser agora uma mulher a próxima presidente. Momento grande…

Momento Tao

A igreja é de pedra. Ou de Pedro. Respeito-a já só por isso, mas o templo vivo de Deus é o homem. A outra Luz. Tão cheia de Graça…

domingo, outubro 10, 2010

Rasuras no Espelho de Narciso

 Foto: Marcelo Sant'Anna


Negraria

O Colectivo de Artistas Negros/as - "Negraria" - realizou mais uma etapa do projecto Diálogos com as Africanidades (música, dança, teatro, performance, arte e educação), no passado mês de Setembro, em Belo Horizonte. No "Negraria", segundo quem foi, a estravaganza da arte, cultura e cidadania dos afrodescendentes no Brasil. Participou do evento, a nossa amiga Rosália Diogo (foto), autora do livro "Rasuras no Espelho de Narciso", um trabalho de pesquisa com educadoras sobre a representação do negro na imprensa.

Academia

Agradeço à Academia Imperatrizense de Letras (AIL), que no seu último pleito eleitoral me elegeu, a par do escritor J.R. Guedes (São Paulo), como membro-correspondente. Devo-o também à professora e amiga Rute Pires, que me mostrou os caminhos do Maranhão. Esta nova responsabilidade - seja pois, com nobreza, todo o cargo seu encargo - é assumida com humildade de quem já acha ser hora de criarmos a Academia Cabo-verdiana de Letras, esboço de projecto nas mãos de Corsino Fortes, um dos nossos poetas maiores. Em verdade, o que impende sobre os ombros de um membro-correspondente da AIL?

Burke' s gone

Princesa, faleceu hoje Solomon Burke, deixando o nosso "soul" mais vazio. Festejemo-lo, todavia. Everybody Needs Somebody to Love. Meia nove meia, sendo hoje 10/10/10 no calendário. Eu votava em você, Princesa!


Uma Didática da Invenção

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
e um sapo engole as auroras


IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.


Hoje eu desenho o cheiro das árvores.


IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.


Acho que o nome empobreceu a imagem.


Manoel de Barros



sábado, outubro 09, 2010

Paz Inté Graal


Valha-me este dia

Não escreverei aqui do odiar as coisas mais deploráveis, como fosse eu, pobre mortal e pecador, o justiceiro deste dia que, apesar de aziago, tem em segredo do existir, os seus cantares. Nem porei, inscrito em crónica, o aviltar aos céus e catedrais, tão pouco o farei aos infernos, posto ser cá dentro a Caverna de Platão que se interioza e que me aterroriza mesmo quando se faz luz depois desta treva. Fico em paz e no meu canto, exilado na montanha, em zen e por nirvana, temente dos mistérios e atinente às buscas. Fico, andarilho monge e arqueiro manso, em querer saber do Graal, em querer saber do nada que, vez por outra, me ilumina…

Tempo, tempo, tempo, tempo…

Meus ilustres amigos, podeis querer recordar o passado, exercício necessário e mais do que saudável, tanto que Freud o explica bem. Mas regressar ao tempo ido, para além de quase impossível, se nos configura absurdo. As coisas passam. Passam-se até. E as sintaxes, as morfologias, as semânticas e as essências, bem como as ciências, vão sendo outras. Longe vai o tempo em que as coisas da metrópole se espraiavam pequenas e mediocres por esta terra, então província. Em verdade, mercê do vigente ordenamento (ou reordenamento em querendo vossas senhorias), já não há a antiga metrópole, nem a então província. Há mais de trinta e cinco anos que não as há. E este não haver foi o facto mais relevante (e, por consequência, mais sublime) de todo o processo histórico cabo-verdiano! Foi preciso, primeiro, a libertação (soberania) para, depois, conqusitarmos a liberdade (democracia)…

Travo ao subtexto

Revejo a prosa em perspectiva. Hoje, deu-me de vasculhar as gavetas, os cadernos, os moleskines, os arquivos electrónicos, os jornais, as revistas, os livros. Deu-me de ir ao baú das coisas feitas ao longo do tempo. Fazer o balanço geral. Os contos, as crónicas, as notas, as caudalosas fráguas de um romance em rampa. Tudo se sujeita a retoque, acerto e concerto. Nenhuma obra literária se esgota em seu próprio retrato. Para lá do formato, aparato e conteúdo. Fica-lhe premente e o inerente no dito e seu não dito. Fica-lhe o travo do subtexto. A escrita de ninguém se sublima em definitiva feição e muito menos em perfeição. Nem mesmo a de Eugénio Tavares ou de António Aurélio Gonçalves que, em podar a flor do lácio, dentre todos nestas ilhas, foram os mais delicados. Nem mesmo a tais mestres…

quarta-feira, outubro 06, 2010

Mãe

Como gostarias de ver a torrente das águas, descendo o monte em cascata. Como adorarias o rumorejo das águas, em bolhas de girinos que se tornam sapos. Coaxam ali coisas saltitantes; gorjeiam acolá coisas voantes. Para além do alvoroço, roçam pelas encostas a silvestre relva e o musgo silencioso. Cheira a rosmaninho e a chá de arruda. É tempo de chuva e tu distante do carinho que a ninguém eu daria. Entrementes, a escalvada cor da secura dando lugar a uma pele bem mais esverdeada. Infinda saudade de não estares aqui…

domingo, outubro 03, 2010

Fogo de boas águas

Cutelo Alto

No Cutelo Alto, Mosteiros, dorso escarpado e fértil, dir-se-ia encosta do Vulcão, os muitos e cruzados olhares e suas afoitezas. O descendente milheiral a perder de vista. Crianças douradas, olhos de uva, são ruidosas entre as folhagens e fumegantes casas. Posto que há vapores, fervores e, ressentidamente, amores de “padjigal”. A névoa assenta seu orvalhado manto sobre a música, igualmente ruidosa, de um terraço mais próximo. Grasnares esparsos (e os corvos já são raros), tão parcos quão reminiscentes milhafres. Rufares, alhures, no “padjigal” de amores acontecendo. Balbucio-vos os versos de Adélia Prado: Deus há! E pode que haja o diabo. As goiabas racham-se por não se conterem; explodem os amantes, frutos em si, de já maduros. Por mim já era semântico (balsâmico até) que os seres se amassem em assaz amanho. E a tarde se extingue alvacenta no Cutelo Alto. Não fosse a cerrada névoa sobre os cafezais, pareciam longínquas como estrelas as luzes de Santiago – a ilha grande…

Fosse em Siracusa

Não tomes nuvem por Juno (ou inhame por bife), assim me dizia o sábio, toda a vez que, por excesso de palavra, confundia mátria com pátria. Sobretudo, quando, no afã de certa história, me embriagava pela versão dos deuses da esquina e percorria as avenidas do tempo no carnaval dos renitentes. Dizia-me ele, sabido e probo, que da bandeira as estrelas caiam, uma a uma, e esboroavam-se no chão como cinzas. E o azul, cúmplice do vermelho, entrava na esquizofrenia do sem cores e um palhaço de serviço lembrava de entoar o desafinado hino, em que a clave, desafinada, a ninguém desafiava. Os pequenos deuses são de facto a nossa tragicomédia! É vê-los aos pinotes (em tanta egolatria), nessa coreografia de tiranos. Em Siracusa, eram motivo de chacota e de bater das latas. Por aqui, nem a vaia cidadã. No conto do sábio, soam à farsa. Ou, se tanto e com eufemismo, à representação burlesca. E, pensando em douta sabedoria e em toda a mátria, não me é preciso regressar ao quadro de René Magritte para entender que “Ceci n´est pas une pipe”…

Mil tons de Mário Lúcio

Saúdo, em toda a crença, o álbum “Kreol”, de Mário Lúcio Sousa, um dos mais sábios, talentosos e prolixos músicos deste nosso tempo cabo-verdiano. Com uma noção mais láctea e global da crioulidade, este nosso amigo traz, para a delícia das nossas almas, novos pensares e falares, outras sonoridades, que em labirintos de nós próprios, raras, mas pródigas vezes, se deixam esvair. Mátria esta, ditosa em toda a linha, seduzida pelo cognitivo pulsar (e mil tons) da sua Música em convívio com o Mundo…

quinta-feira, setembro 30, 2010

Em fase de terra

Nada consegue conter e muito menos contar a solidão da gente. Procura-se no céu e no vão. Ledo engano vasculhá-la no infinito. Se lá estivesse, estaria em mil bocados. Fragmentos. O chão da greta e do broto é a melhor gramática. E de repente, a lagartixa doida e o quieto formigão fazem melhor república que isto aqui. Sem a maralha, o Rei vai nu e o pessoal está renitente. Às duras penas, o poema se refugiava aqui. Meio descrente da própria palavra. Com perdão pela má palavra, mas o grande erro é o acerto. Queria desacertar a vida toda. Gostar mais do vazio que do cheio. E me decompor na crosta que sou. Poeta, eu? Só porque às vezes – cada vez mais menos, diga-se – me afoito a rimas toantes com tomates e farinha de mandioca. O resto sendo assalto. Assonância ou ressonância? Ou tão simplesmente sobressalto…

terça-feira, setembro 28, 2010

K_ultura no Petit Pays

Do cosmos e do caos

A aeromoça da TACV anuncia a aproximação do Aeroporto Internacional da Praia. Os passageiros endireitam as costas das cadeiras e das mesas, apertando os cintos de segurança. Da escotilha do avião, descortina-se a Cidade da Praia: linda, rendilhada pelo mar e inconforme no seu afã de metrópole. O Farol Maria Pia, quase como obelisco na ponta do istmo. O Ilhéu de Santa Maria, divino e felizmente intocado. As achadas e os baixios, bem como as sinuosidades da orla. A ilha de Santiago, agora verde devido às chuvas, abraça a Capital que se implode no amparo da baia. Do alto parece um poema. Balbucia-se o lindo poema que lhe fizera Jorge Carlos Fonseca. O sonho da Praia cosmopolita, entregue ao cosmos. Já em terra, as coisas são outras. São o caos. Os detalhes das imperfeições e das insatisfações. O insano. A cidade a precisar de mais e melhores cuidados de todos – da edilidade, do Governo, da sociedade e do cidadão -, para exalar a áurea que se lhe descortina do ar.

Outubro pródigo e bonito

Este Outubro, que entra pródigo e bonito, de fartas águas e verde chão, é tempo em que o meu kodé faz oito anos e em que se aborda também a Cultura, como imperiosa necessidade para a identidade, para a diplomacia, para a economia e para a competitividade. Mês da Cultura, porque oficialmente efeméride de Eugénio Tavares, reconhecimento probo e em boa altura institucionalizada pelas autoridades cabo-verdianas. Mas as coisas precisam acontecer depois dos seus arquétipos. Aliás, elas já aconteciam antes de os aparatos serem montados e reclamam transcendê-los. Assim, faz sentido que cheguemos ao ponto de questionar e de gizar, com desdobramentos de reflexões e debates (em crítica, mas não em crise), sobre o papel da Cultura em seus vários cenários. É a Cultura que canta “Petit Pays, je t´aime beaucoup”, ampliando Cabo Verde, pela força do softpower, no mundo. É a Cultura o grande leitmotiv da Caboverdianidade.

Diplomacia cultural cabo-verdiana

Defendo, numa palestra sobre “A cultura como um dos pilares da diplomacia: mecanismos e eixos de promoção da cultura cabo-verdiana no exterior “, a ideia de se criar, como recurso coadjuvante à diplomacia clássica e complementar à diplomacia económica, o Instituto Eugénio Tavares. Este seria um organismo fomentador de uma agenda cultural no exterior, tanto junto à Diáspora Cabo-verdiana como junto aos países com os quais temos relações diplomáticas activas e dinâmicas. Assim como o Instituto Camões, de Portugal, e o Instituto Machado de Assis, do Brasil, o hipotético Instituto Eugénio Tavares, mutatis mutandis, deveria tutelar-se pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência e Cultura, em articulação com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Emigração. Isso, a par de uma maior capilaridade de diplomatas ou de personalidades da Cultura, a servirem como adidos culturais junto às nossas Embaixadas.

Diplomacia cultural tout court

Os países emergentes, ao não possuírem uma diplomacia cultural, complementar à actividade diplomática tradicional e à diplomacia económica já instaurada, insistem na prevalência das relações internacionais de estratégias inspiradas pelo hardpower e pela subvalorização do softpower. É preciso que os mesmos compreendam que, com o avanço dos processos de globalização económica e tecnológica, as relações internacionais passaram a depender, cada vez mais intensamente, da cultura e do softpower, não se confinando ao poder económico ou à barganha política. Diferentemente do que ocorre em países como a França, a Itália e a Espanha, bem como na lusofonia em países como Portugal e o Brasil, que desenvolvem projectos para divulgar a sua ampla gama de expressões culturais, por meio de uma política exterior integral e integradora, em países como Cabo Verde a Cultura não ainda é considerada um factor coadjuvante da política externa.

terça-feira, setembro 21, 2010

Orvalho, névoa, cerração e neblina no alvorecer

Ao meu amigo Omar Camillo


 
Estarei aqui para rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.

Adélia Prado


Dia lindo

Não repares, amigo, nascerem certos dias ao contrário. Mas ora descortino orvalho, névoa, cerração e neblina, numa linda sinfonia. Alvorece, amiúde, um dia lindo. Será que também raiou um dia de rara beleza sobre a Pátria, aquela do canta, irmão, do canta, meu irmão, enquanto me desnudo para um banho de pétalas? Não que eu descortine a República como um mural de sombras ou em clarões bem mais difusos. Mas carrego as minhas legítimas dúvidas sobre o Banho Pátrio, se não estaremos confundindo nós sempre nuvem com Juno, a mandar para o ralo o bebé banhado. Já a mesma preocupação tivera Eugénio Tavares, em tempo menos probo, e fora o Poeta perseguido e executado pelas feras de serviço. Dúvidas existenciais, diria, posto que já na soleira da senectude, saber para onde se vai mandatário se torna. Será que sobre a Pátria, outrora terra dos nossos avôs, ora de o homem a certeza, recaiam as seleccionadas estrelas do zodíaco e nos emprestem alguma luz estelar de outros caminhos?

Maçónica disfraçada

Se do Velhote irmanasse a Pátria, se dele também emanasse, para além da espuma que lhe cristaliza a fronte e lhe doura o corno da República, a luminosa fonte da Verdade, fosse ainda ele, para o gáudio dos Melhores Filhos, o dono da res publica, eu me queria tão longe quão eremita, em busca do Nirvana. Numa recuada montanha e um condor viria ao fim da tarde dialogar comigo e a neblina. Ou quem sabe valesse a pena baralhar e jogar de novo, estando, como estão, as quinas viciadas. Restaria o consolo (e a grata esperança) de as verdades se tornarem todas biodegradáveis e mal-cheirosas. O haver dinâmico desafio da vida a estes acerbos dias. E a Pátria, ao invés de assaz maçónica disfarçada, se tornasse, cada vez mais, casa, abrigo e porto seguro de todos nós...

Nu na janela

Tão nu como nasci, vejo Belo Horizonte pela vidraça. Sem as afoitas vestes da certeza, nem os sapatos da esperteza, esta cidade me encanta. A minha consentida solidão sabe ao abraço de uma deusa tântrica e mais cósmica diante da real nudez. Homem peladão, como em lascivos momentos a divina faria jus ao “um ano embarquei nos seus olhos e, desde então, não navego mais sozinha”. E é cómico como me soa a poema o amanho desse pássaro! Carece e merece o Albatroz de bons momentos. Como todo o mundo, aliás...

Godot, crónica & etc

Fiquemos, amigo, aqui por ora. Enquanto isso (ou, antes que mais tarde anoiteça), penhoradamente agradeço aos leitores pela paciência com que passeiam por estas croniquetas amenas. Uns há que esperam Godot (é a grande maioria). Outros hão de aguardar pelo K Magazine, a cada quinta-feira. Nesse meio tempo, amigo, orvalho, névoa, cerração e neblina no alvorecer de dia bem mais lindo...

terça-feira, setembro 14, 2010

Do cisne

A Rute Pires, amiga, a cumprir os anos

(De repente, o cisne: branco, branco, branco. Trocava-o pelos jacarezinhos de Tocantins. De repente, os alpinos montes. Deixava-me emocionar pelas águas que vazam do além. Amazónia, diria você)


Não tanto se via quanto desliza,
Todavia, fio que se alisa no lago,
Em ser, rastro de cisne, mastro
O que vira, de seu lastro, eu…

Quedo e quieto, sem este grito
Nem aquele atrito, algo restrito
Que se alteasse, ateu que sou,
Sussurro de Deus em seu olhar…

(Branco, branco, branco, o cisne. Mas do pássaro que se escuta. Afoito pássaro do nada. Em suas cores do ocaso. Você também é poema…)

Filinto Elísio

Dez equilíbrios de Deus


Sublime dinâmico

Chove, troveja e relampeja. Há aqui uma tempestade. Helás! Termino mais um livro de poemas: intitulo-o “Dez Equilíbrios de Deus”. Havendo excessos da Realidade, estes a absolutizarem-se sobre as demais realidades, importaria, como contraponto existencial, não abrir mão da poesia. Naturalmente que, enquanto poeta, quero estar à margem das coisas para pressentir (cá dentro) a pequenez dos semi-deuses e dos deuses locais, e para inalar o halo sublime de Deus (também cá dentro e não no Sinai) em seus “Dez Equilíbrios” e jamais em seus Mandamentos. Quiçá, para o leitor mais atento, faça tudo isso algum sentido, mas para o mais distraído olhar de Sancho Pança, nas antípodas de Alonjo Quijano, mormente seu complemento, os moinhos só serão moinhos. É preciso ver em tudo, a sua tempestade. Umberto Eco diria: “Exemplo típico do sublime dinâmico é a visão de uma tempestade”…

Montanha parindo rato

Vem, irmão, a urbe, a natura e o cosmos me interessam. E o amor, que é a verdadeira energia renovável. O resto pode esperar para depois da tempestade. Vem, irmão, olha-me para esta lixeira a céu aberto e o halo das queimadas incensa o mote dessa Grande Circular. Vejo o Mote Vermelho, esburacado como um queijo suíço. Extirpado dir-se-ia por um assassino serial. Anaxímenes defendia que o universo resultava das mutações do pneuma áiperon (ar infinito), como nossa alma que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim, também todo o cosmos sopro e ar o mantém. Vejo o Monte Vermelho e se não há crime ecológico (o ar infinito afinal), como o há na Praia Negra e haveria na Murdeira, vamos mudar de bandeira, hino, fé e crença. Vejo o Monte Vermelho, em cuja cercania se estende a não menos polémica Cidadela à espera do seu Cavalo de Tróia e peço licença ao leitor para vomitar. E, com perdão pelo demo de comparação da fala, se o Monte entrasse em serviço de parto e nos parisse ali um rato vermelho? Quem sabe não ressurgisse daí o sopro e ar dos próximos caminhos…

Haver cidades

Saúdo, efusivamente, a iniciativa de decretar cidades às sedes concelhias, algo que se estriba no nexo de respostas à dinâmica de urbanização do País. É um acto mais que constitutivo, mas prospectivo, em prol das cidades que, doravante, terão os apoios institucionais e administrativos, bem como as políticas públicas mais dirigidas, para uma urbanização qualificada. E o que seriam, ao meu modesto ver, essas políticas públicas mais dirigidas? Antes de mais, o urbanismo submetido ao plano director municipal e ao plano de saneamento ambiental, ao projecto das centralidades económicas, sociais, culturais e outras, bem como à gestão moderna e sustentável do espaço-cidade, que é, acima de tudo, uma polarizada geografia humana. Antevejo o próximo cenário governativo com muitas inovações, dentre elas o Ministério das Cidades. Mas é algo que transcende o planeamento dos gabinetes. Acrescentam-se-lhes elementos de força para uma melhor gestão das cidades, nomeadamente a mobilidade, sustentabilidade, multiculturalidade e sociodiversidade Em verdade, a urbanização, não só do ponto de vista sociológico, mas da perspectiva política, se tornou numa grande realidade nacional. E não se deve fugir às realidades…

Trivium

Volto, como quem já tarda, na próxima semana…

sábado, setembro 11, 2010

Solilóquio de tartaruga ou baleia & poeta em sua janela

Baixinho, quase em segredo

Baixinho, quase em segredo, não vá a cidade malfadar esta mania, mas gosto de falar sozinho. Quando estou só chego a declamar odes e epopeias. Se não aparecer vivalma até faço discurso sobre o estado da Nação. Sei que o pessoal toma tal excentricidade como coisa de maluco e, algum mais generoso (porque, vasculhado, se encontra) como coisa de poeta. Ultimamente, dizem que é do aproximar das eleições, certos vigilantes espalham-se pelos bares, esplanadas, restaurantes, locais de trabalho e prédios de moradia, a tentar identificar os que falam sozinho. Os que falam só, contrariamente aos que só falam, são um perigo para a nossa jovem democracia, dizem. Tais vigilantes não se deixam emocionar pelas prerrogativas da loucura ou da poesia. Vou ter de tomar uma providência…

Sem algum porém

Ele parece mesmo uma tartaruga ou uma baleia: animais em vias de extinção. Quem souber das suas coordenadas, corra logo a notificar a imprensa. O denunciante terá direito a ser entrevistado no telejornal e outras mordomias da classe dirigente. Vejo-o, mas fico calado. Proteger as espécies é jogar limpo com a existência. E o garção pergunta quer mais do mais ou mais do menos e eu, um tanto deliciado, cá para mim que ele me sugestionava os versos de Arnaldo Antunes, respondo queria mais desse menos e, no dizendo, fazendo, me foi servido mais uma taça de vinho tinto.

No que acontece lá fora

Lá fora, a noite se esboçando. Cá dentro (em como me lamento), o fado de uma saudade. Os versos que balbucio: Cupido não divulga quando vem. Nem quando não vem, penso, logo existo. O poema, entretanto, está parado. Estagnado da silva. Como a rua, de repente, parada diante do semáforo vermelho. Ou, então, à hora cambaleante. Um engarrafamento não chega a ser romântico. Mas tu acharias que sim? Temos cidade! Olho pela janela: a rua. Lá fora, mais ao alto, a lua. Cá dentro (no quarto do meu pensamento), mulher nua que me arrebata…

terça-feira, setembro 07, 2010

Terçar armas

Chove

Gosto de sentir a chuva, quando vagarosa como agora e deixa uma batida de saudade cá dentro. Em verdade, gosto mais do céu com cara de chuva. Não que eu esteja romântico, realista, hiper-realista, surrealista, blá-blá-blá. Apenas ando nostálgico por estes dias. E um cristão (quanto mais um ateu) terá direito de acordar encharcado, como amanhã, por triz do acaso, possa ele se raiar solar para caramba. Chuva suave, parecendo brisa. E eu vou escrevendo como um navio à vela que, indo longe no mar, se esbate na neblina. Chove e a chuva para mim é aquela canção de Jorge Benjor "Chove, chuva": simplista, quase cristalina, com a verdade da água de uma lagoinha. Vezeiro, costumaz e renitente da minha varanda, vejo o mundo acinzentado. Terçar armas contra a solidão? Deixai-me em busca dos meus silêncios desavindos. Uns estarão pela chuva vagarosa e mansa, outros andarão em tal navio pela névoa plúmbea. Desconfio, vasculhando-os de fio a pavio, que é tudo vazio. Senão tão venal quão será o pensamento,  existirei de haver cá dentro batida de saudade...

Água rósea dos cântaros

Conta-me o amigo João Branco da perfídia dos seus detractores anónimos. Mas o que queria ele que houvesse? Gente reconhecida, grata e alegre por já haver movida teatral em Cabo Verde? Gente saudável e sem peçonha, de bater palmas quando se iluminam as luzes da ribalta? Gente que não mata, nem esfola, quando se lhe aparece outrem com a graça de uma borboleta e o viço de uma rosa em seu lado de cá? Não, meu caro. O meio não é pequeno, mas tacanho. Os tempos não são novos, mas minguados. É tudo neófito, do piorio e bafiento: a xenofobia à moda, o racismo emprestado e a contradança da malidecência. Eugénio Tavares, ora patrono da Cultura, passou pior com a miudeza administrativa. Mesmo Baltasar Lopes, ora adulado em morte, era apupado pelos mediocres da parvónia. E Amilcar Cabral, que a veneranda ora cita, fora ceifado pelos seus. A perfídia verde ou amarela - a peçonha seja ela em arco-íris -, tal como as chagas no dorso de Cristo, os detractores anónimos são o ínfimo sinal de sermos água rósea dos cântaros...