sexta-feira, outubro 23, 2009

A luz dessa cidade




Salvador

De há muito que a minha alma entrara na cidade de Salvador. Por razões várias. E por interpostos conhecidos de outros carnavais. Mas agora ela entrou na minha alma. Sinto-me vencido e invadido.Verdadeiro amor. E sem qualquer outra racionalidade, a cor dessa cidade sou eu. Para mim é quase uma questão de nacionalidade. Mais de mátria que pátria. De Humanidade. Entranhado de tudo (do sagrado ao profano), abraço o arco da Bahia todos os que aqui estiveram antes de mim nesse recôncavo. No Rio Vermelho, de boêmias noites, estarei sempre como um “Man in the mirror”...



Genivaldo taxista

Em qualquer cidade, adoro meter conversa com taxistas. Os barómetros sociais da urbe são os taxistas, os barbeiros e os esmoleiros. O pulsar da realidade dado por estes é muito mais fiável que as sondagens e as estatísticas, estas quase sempre inquinadas e de neutralidade duvidosa. Em Salvador, tive o prazer de conhecer Genivaldo, jovem na praça, mas lúcido sobre a pornografia política e sobre a guerra social em curso. Enquanto percorríamos a orla marítima, com a ilha de Itaparica ao fundo e as histórias de João Ubaldo Ribeiro ali escondidas, Genivaldo ia contando os casos, cada um mais escabroso que o outro. Do traficante transferido para uma penitenciária federal e que, por isso, instaurou estado de sítio na cidade. Das bocas de fumo, do lixo e da prostituição. Do turismo sexual e da pedofilia com conexão internacional. Da genitália pervertida e vendida ali na avenida. Sendo depois disso o oceano, o vasto mundo. O esquecimento...


Violência polícial


Entre os vários problemas sérios que a cidade de Salvador apresenta o convívio (cada vez mais impossível) entre a extrema pobreza e a extrema riqueza é o maior de todos. A desigualdade elevada ao absurdo. E dela decorrente, a violência social. O pessoal da favela, no afã da sobrevivência, invade a cidade a toda a hora. Não há trégua. O tráfico de droga recria o novo proletariado urbano e o transeunte é apanhado, em plena rua, em troca de bala. Tresanda a sândalo e maconha pelos becos. E salta à vista uma pobreza de embaraçar os deuses. Aqui, a desigualdade confunde-se com a raça. E não se sabe se a Polícia Militar anda a dizimar o pobre ou o negro. Se a matar afinal o negro pobre, o que é circunstância tão plasmada que confunde o genocida. Pois, como diria Caetano Veloso: o Haiti é aqui...

Ana do Pós Doutoramento


Estava ela ali defronte. Do outro lado da mesa. Linda, como uma gazela surgida da neblina. Sugeriu para o nosso almoço uma sopa de caruru e uma moqueca de siri. Menu afrodisíaco, conforme o garçon meio atrevido. Mas o almoço era para falarmos da Guiné-Bissau, terra de Ana, estudante largada ali na terra de todos os santos e de todos os pecados para um Pós Doutoramento. Ana anda assustada, assustadíssima, com a Guiné-Bissau. Esquartejar o Presidente da República, onde já se viu? O garçon agora preocupado, entrara na conversa: os santos precisam abençoar esse país. E os homens devem abraçá-lo de novo, balbuciei para os ouvidos inaudíveis de Ana, posto que da mesa vizinha o pessoal cantava em coro “O canto dessa cidade é meu”. A sobremesa: Quindim de Iaiá. Apesar de balançado diante do pudim de tapioca que Ana comia ali defronte...

Estas linhas vão para Manuel Rui, pela cumplicidade não dita mas pressentida agora com “Janela de Sónia” e para Ondjaki, pela cumplicidade dita e assumida, e já agora para Odete da Costa Semedo, pelas cantigas de Mandjuandadi. Oratura boa a da nossa mesa no XXII Congresso da ABRAPLIL, na UFBA, em Salvador da Bahia. O canto dessa cidade é meu...