quarta-feira, agosto 11, 2010

Mosteiros, o sol, o cão e o agente da Polícia

1.

O sol nasce e morre no mar. Aqui nos Mosteiros, ilha do Fogo. Tenho de escrever a crónica para o jornal A Nação. Ter de escrever é algo que não vos descrevo. Escrever? Poderemos deslindar esta questão de muitas maneiras. Escrever bula de remédio é uma coisa. Escrevinhar, chutando a gramática e esnocando os frémitos dos doutos, era até giro. Detonar a radioactividade nas academias. Seviciar a linha do sujeito, predicado e complemento directo. Acabar de vez com o IILP e rir às bandeiras abertas dos imortais. Nasce-me e morre-me no mar o sol. Nos Mosteiros, como já sabem. Escrever para ninguém se chatear com o cronista é outra coisa. Escrever de pulso aberto não é uma coisa, nem outra. É um desafio ulterior, regressar a um dos ímpetos mais antigos do homem. Escrever poesia, por exemplo. Submeter-se ao repertório lícito da disposição das palavras. A ancestralidade abissal da poética, haviam de ver.

2.

Deambulo pelas ruas da vila nesta manhã nublada, porém de um sol nascente no mar. Os meus próximos estão longe e os conhecidos daqui estarão a dormir ainda para que eu os vá incomodar com o meu dilema existencial. Enquanto o mundo é isto, posso dar-me à liberdade de passear sozinho pela vila: se eu fosse conversar com os pescadores na Praia do Beco, se eu cumprimentasse o padeiro no largo da praça, se eu declamasse uns versos de Álvaro de Campos à funcionária da Câmara Municipal que varre o jardim, se eu me tornasse roxo ou esverdeado, virtualmente como um marciano. Mas não: quem paga impostos não se pode dar ao desfrute. E fica-se pela mesmice, pelo tédio de sempre, ter de escrever as coisas de sempre. Vou até à orla do mar e vejo os botes apinhados de peixe, a faina ledíssima dos homens do mar, a maresia reconfigurando esses homens do trabalho. Fico meio leviano…na ledice mesmo.

3.

Sob o olhar curioso de um cão vadio, o agente da Polícia Nacional fala pelo telemóvel e conta da cava tristeza de perder uma amada. Os polícias sofrem, como eu, de amores perdidos? O homem diz que sim a alguém do outro lado da linha. Apetece-me indagar-lhe as angústias todas. Como se ele as soubesse. Saberemos nós as nossas angústias todas? Apostei que vertesse umas lágrimas, mas entre triste e indignado, ele suplicava apenas pelo regresso da amada. Se eu lhe declamasse tais versos? Seria desacato da autoridade. O que ando a escrever por estas páginas, quando a moda é discorrer sobre a avaliação dos médicos, o alargamento do recenseamento eleitoral, a mulher condenada à morte no Irão e o derrame do petróleo um pouco por todo o lado. Ao menos escrevesse sobre a política e não este afã de um cão vadio atento ao agente da Polícia Nacional…

4.

A poesia vem antes do Verbo, antes do Pensamento, antes do Criador. Ela se enquista na premissa de vida, além da própria linguagem. Ao improvável, não se tem prova, mas foi a poesia a formular e a formatar o Criador. Segundo um naturalista, o Verbo surgiu menos por afrontas fisiológicas (fome, sede, tesão, sono…) do que por premissas morais (amor, ódio, saudade…). O homem podia ser lobo do homem ou comer o fruto proibido sem dizer nada a ninguém. Nem a si mesmo. Calado, sem pio, nem ai, faria tudo o que a fisiologia demandasse. Mas ao amar de verdade (com musa, diva e devoção), ao veio poético que amanha o coração, sentiu a necessidade do Verbo. Escrever, por conseguinte. Na angústia e no abismo do sentir com as palavras, senão em tal escondida cerne da Humanidade. Aqui, nos Mosteiros, o sol nasce e morre no mar. E escrever sobre a lua são outros quinhentos...