sábado, agosto 14, 2010

À sombra da grande árvore

Da terra, ora verde, ora magenta, resguardo uma borboleta azul,
dois azuis rapazes e uma princesa da cor do mar…


1.

Vão desculpar-me mas vou escrever sobre isto. Deu-me para ficar horas esquecidas a sentir o pulsar das pequenas coisas: a lagartixa que, rastejando, dribla a curiosidade do rato, por sua vez atento ao gato. Havia de cá estar um cão mais raivoso e não este pachorrento e dorminhoco, suspirando se calhar pela cadela dos seus sonhos. Deu-me para olhar à secular árvore que, se erguendo portentosa no quintal, testemunhara tão aqui ter sido senzala quão acolá casa grande. Ainda cheira-me a café no grande pátio. O ancestral café debulhado, torrado, ensacado, levado para longe no lombo dos burros, quando não dos escravos. Pressente-se a áurea feudal deste lugar. Para além do sobrado, com a sua azáfama onde uma ama serve chá à patroa, estende-se a terra – do mar ao monte. E a terra é luxuriante. Mentalmente, luxuriante, nas plantas de suas ramagens. Nas flores e nos frutos. Mas, quando não chove, a retina se retinta em castanho e cinza, de a cordilheira ser interminável. O verde vai dar lugar a essas cores, em contraste ao mar e ao céu que também se azulam nesse infinito. Apesar das estações, como às mulheres menstruadas de tão férteis e a seu tempo, a terra é luxuriante. Dir-me-ão que é descrição desgarrada, sem enredo. E eu respondo que sim, agora que o cão acorda, já não estando o gato por perto e a lagartixa furtiva tão pouco. Que é sem enredo. E a igreja matriz, badalando o sino em descompasso, faz esvoaçar pombos em bando…para mais longe da terra luxuriante.

2.

Fui me abençoar à velhota que, do parapeito jusante ao mar, sorria da minha presença. Ela também se deliciava com a chegada dos botes, hoje, em tempo nublado e aziago. De pouca faina. Meio pequeno, todos se conhecendo e se sabendo. E ela: você, moço bonito, o poeta ganha muito dinheiro? Ganha pouco, ganha nada. Ganha outra coisa que não dinheiro. Moço bonito, o poeta ama o sol deste amanhecer? Ama, sim, com lágrimas nos olhos. Contei à velhota que, se não houvesse vivalma por perto, eu cantaria ali até que o sol tomasse o rumo ao dia. E me confidenciou que a lua costumava andar atrás dela à noite. E eu, para não dizer o mesmo, confessei que tinha algumas estrelas de estimação e que o zodíaco pertencia à minha mãe. Ah, como queria que os meus bisnetos fossem poetas! Sem dinheiro, mas amantes do sol do amanhecer. Rimo-nos. Com estrelas de estimação (guardadas no coração, corrigiu ela) e a lua seguindo-lhes o rasto pela noite. Dois pescadores, esquecidos ou quiçá resignados da amofinada faina, aplaudem a nossa conversa. Meio pequeno, todos se conhecendo…

3.

Alguém me telefona, assustado. Incendiado, diria. Então, José Luís Hopffer Almada, poeta e ensaísta, disse no Debate Africano, da RDP África, que “Outros Sais na Beira-Mar” não era um romance? Rio-me. Dou gargalhadas. Não com o dito do confrade, mas com o susto e o frustre do meu interlocutor. Que luminária! De facto, são escritos que se encadeiam aos solavancos e recusam a linearidade. Fichas que se entrecruzam. Uma bela ruína, disse-lhe. E, de resto, José Luís, tirando-lhe a mania dos heterónimos, é um respeitável ensaísta e um bom poeta, pelo que tem opinião mais que abalizada sobre o miolo e o conteúdo desse livro, editado pela Letras Várias. Entrementes, tragam-me caixas a rodos e aos magotes. Do romance, do não romance, da crónica, da não crónica. E mando aí os meus escritos. Há dias, quis escrever poemas existenciais (e eram para os meus azuis rapazes) dentro de uma caixa dos sonetos. Com magníficos desenhos do Mito. Chamei-os “Li Cores & Ad Vinhos”. Terminei agora os poemas do “Me_xendo no Baú. Vasculhando o U” e eles se emparelham aos quadros de Tchalé Figueira, se grafitam para corpos dos bailarinos e fizeram já sorrir a princesa da cor do mar. Igualmente, a fornada dos textos em prosa, para a borboleta azul, diz no frontispício “Conchas de Noé & Arcas Ostras: Cantos, Contos e Causos”. O mesmo (esse que se indigna) me diz: és bom em títulos. Não sou bom, coisa nenhuma.

4.

Sou melhor em cuidar das roseiras. Acariciá-las no carinho e no gostoso com que se demora no ninho da amada. Muito melhor no preparo do arroz de pato ao forno (temperado com sal, alho, cebola, salsa, pimenta, louro e mel, e salpicado de chouriços, bacon e cogumelos). Sou de longe melhor em compor a mesa, recolocando os pratos, talheres e copos. No protocolo de amar com fome e sede, mas sem perder a delicadeza. E, nessa linha, também ouso escrever. Como quem bebe um bom vinho e debica iguarias no canapé. Vagarosamente. Socialmente. Diria mais, existencialmente. Escrevo amiúde em múltiplos dos momentos. Dos lugares. E dos vagares. Multiformatos. Multiusos. Bom mesmo é estar aqui e agora, à sombra da grande árvore. Vão dizer que não é um luxo esta quietude de escutar o barulho das ondas? Que me desculpem, mas escrevo sobre a terra luxuriante. A lagartixa reaparece e passa pelo formigueiro que labora sobre réstia de pão. Também estão por perto duas baratas, um grilo e um escaravelho. Faltam-me agora apenas a borboleta azul, os meus azuis rapazes e a minha princesa da cor do mar…