segunda-feira, agosto 23, 2010

Tirano de Siracusa


De vez em quando, alguém me interpela no meio da rua. Como é escrever crónicas todas as semanas, entra ano e sai ano? Com a maior tranquilidade, respondo que é apenas dever, compromisso como qualquer outro. Faz parte do meu trabalho. Aliás, não sei mudar roda de carro, nem jogar futebol. No Liceu Domingos Ramos fui o pior futebolista de todos os tempos. Também não serviria para cantar e dançar em cima do palco. Tentei em criança, mas tinha voz desafinada e ginga de contradança antes de virar moda. Tão pouco tenho jeito para líder político. A multidão me comove e, desculpem a franqueza, ela não merece o meu coração. Naturalmente que a crónica não contribui para o orçamento deste cidadão. A bem da verdade, a crónica não paga conta nenhuma e, apesar dos que têm gostado com generosos elogios, cria alguns até anti-corpos da parte daqueles que, por se acharem importantes ou rodarem à volta do próprio umbigo, se lêem retratados nos meus textos. E, chegados a este ponto, devo dizer que o desafio de me tornar um escritor a sério não se compadece com os personagens que me frequentam a realidade. Política e socialmente falando, não se pode deixar de ser e de estar na Cidadania, mas, na literatura, depois de se compreender as lições de Platão no episódio do Tirano de Siracusa, as coisas ficam apartadas. Trigo de um lado; joio do outro lado. É sem lenço, nem documento. Por isso, aos senhores que me abordam na rua, mesmo no dever da escrita, permitam-me a vontade por inteiro. Aliás, é a minha forma de não morrer desta chuvarada que ninguém merece e o meu jeito de ir respirando o rarefeito ar da liberdade. Esperando que, por ventura, mas sem obsessão, tais escritos interessem a um mais esquecido na sua solidão.