segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Tatuaria teu nome no meu braço

(Habita-me a partida. Habita-me ela, como quem diz: nenhuma rosa é necessária agora. Talvez outrora fosse caso de ficar. Deixar de ver o ilhéu de Santa Maria. Talvez fosse caso para amar. Habitas-me também. E o abrigo do teu colo é tudo. Tatuaria no meu braço teu nome)





O peso das coisas

Calha-me ser também vosso cronista: canta, irmão. Não único, pois há outros. Pelo menos nisto somos democratas. Mas falarei ininterruptamente de mim (eia, Osvaldo Osório!). O dever de vos relatar as peripécias desta viagem. Detalhar-vos dos náufragos. Sabeis da prerrogativa deste nauta ora desviado para a escrita? Estais interessados em seguir o périplo vendo a paisagem no Google Earth? Ou quereis atinar ao cujo do marroxo, pois dos pequenos nadas, mesmo dos indecorosos, se fazem grandezas? O paradoxo é que, das miudezas, nascem os grandes momentos. A maçã insólita, não aquela proibida no tristíssimo Éden, mas aquela caída sobre a sesta de Isaac Newton. A maçã da gravidade, mais que da gravidez, definiu afinal o peso das coisas. Ou a maçã da cesta (incestuosa, quiçá), pura merenda do Capuchinho Vermelho. Calha-me, das tormentas, contar-vos tudo, tintim por tintim e pelo twitter, de quem finge ser esta cloaca uma grande civilização. Pois, contento-me com o espectáculo do mundo. Delicio-me neste voyeurismo de pastar transeuntes. Sento-me à esplanada e, na meia hora que perco, me atulha o poeta, o imbecil, o génio e o vagabundo. Pago uma bica ao pajem e ao delfim. Ou será um querubim? Um maluco canta o Hino Nacional. Tudo pesa. Até o fugaz das coisas. É tudo por um triz na praceta.



Fonte luminosa

O poeta apalavrava-me ter composto tais versos pelo telemóvel. À medida que cinzelava poemas, mandava-os por SMS para a Dulcineia. Esta recompunha os grafemas a seus dígitos e deixava exalar a metáfora. Na praceta todos aplaudiam o feito inédito. Ou, para ser exacto, facto só contido em “Dom Quixote de La Mancha”, porque às tantas as ficções são sempre verdade. Apeteceu-me contar que eu também carregava o busto do Dr. António Lereno com a palma da mão. E, de um sopro, esboroava-o em cinza vermelha. Ou que o Pranchinha, diante de uma cerveja gelada, tirava da cartola uma fonte luminosa logo ali. Está-se mesmo a ver que a verosimilhança dá capote aos filmes de Fellini. Ou, então, que a musa desnuda saída de um véu de nuvem, tal qual Vénus emergente das espumas ou de concha qualquer, viria sentar-se no meu colo. E que frisson este de a gaja vir papar na minha mão. A sorte inveja. Está-se também a ver a ciumaria geral e em cadeia. Um pintor marreco a discorrer sobre os políticos. Quem se atreveu a chamar isto de parvónia só pelo modismo de pingar poemas nas tardes de Lisboa? Ora, isto aqui, pese embora o halo dos renitentes, é o centro do universo…



Homem de Pedra

De repente, os deuses resolvem tirar dali o Homem de Pedra. Transladá-lo para as calendas ou sabe-se lá outro sítio. Mas uma estátua, feia ou catita, inteira ou desfeita, tem peso e ocupa espaço. No imaginário daqueles que por ela passam, mesmo quando miram sem olhar. Considerá-la um mastodonte, um embirro machista numa terra onde os homens, perdendo a matiza, agridem as mulheres, seja o que for e como for, o vazio é que não. Quem sabe enxerta-se em seu lugar um obelisco à liberdade. A liberdade é hino e o sonho a certeza. E sendo certeza o sonho, implantava-se ali uma Mulher Voadora, com dísticos de “o céu é o limite”. Uma esvoaçante estátua. Uma geometria no espaço sideral. Quanto ao gosto estético, sempre frágil e duvidoso, já que a matilha tem inconsequente uivo, não muito melhor que o do vulgo, diga-se de passagem, pode a cidade, em referendo, escolher outra estátua. Desde que ultrapasse a cota da Achada de Santo António. É como decidir, no restaurante chinês, entre o “Clepe Plimavela e o Polco Doce”. Eu opto sempre pelo “Crepe Primavera”, com molho de soja, sempre menos indigesto que o porco com l pelo meio. Mas falavas do Homem de Pedra. Prefiro que me cantes o “Summertime”. Ou deixes fluir, no MP5, o trompete de Miles Davis...






(Tal como escreve Simone de Beauvoir, morre-se aos poucos. Degrada-se. Gradativamente. Caem os cabelos. As mãos, trementes, entornam o vinho. E molhados, de incontinência urinária, vivem aqueles que foram príncipes. Morrer devagar, como previra Mário Fonseca, num longo poema ainda inédito, que reclama vir à luz desta cidade)