segunda-feira, março 01, 2010

De como se faz um romance

(Na fímbria do instante, onde só rala a neblina, a tua silhueta. Creio mesmo que halo de pequeno nada, chispa de nuvem. Uma coisa meio gasosa. Corola de fumo, diria. Pressinto a tua silhueta e tacteio-te ao de leve, entre o tocar e o não tocar. O esfumado derme do que seria corpo, adivinhado apenas pelo fugaz odor e esta secreta vontade de agarrar o galho das sombras. Quem, desta comparação da fala, abraçou já a neblina, atire agora, antes que a destemor, a primeira pedra. Tenha ela o frescor da aurora ou, quando não, o primor do crepúsculo. Vejo tua figura pelo fosco do pára-brisas. O trânsito flui pela avenida marginal. E o resto é pareidolia, vista assim do Farol Maria Pia)





De como se faz um romance


Não. Um romance não se faz assim. De crónicas soltas, esparsas às vezes. De retratos falados. Como se tudo estivesse turbinado em caleidoscópio. E o escritor drogado pelas entrelinhas. Um romance faz-se com plano de escrita e não ali ao sabor da brisa. Tão que te amanha a prosa quão vaporosa artimanha me requeira mais engenho que arte. Naturalmente que, dentro do texto, farei asfixiar um taxista, depositando-o acto contínuo na lixeira da Praia. Tentarei colocar nesse contexto um jovem crivado de balas por dois encapuçados. O puzzle do seu cadáver terá treze balas, para que o numerário, não sendo cabalístico, seja ao menos aziago senão mesmo de azar. Tudo não passa de palimpsesto, pois por haver apenas o painel de seis em que sois “tango em carminale”. Um romance, factual ou ficcional, faz-se de outra maneira. E não com protagonistas que saem destas páginas e entram na exposição dos 35 Anos das Artes Plásticas para regressarem mais tarde ao folheio das palavras. Quando, no leito desta hora, a cidade ainda anoitece…



E a quantas esta crónica

Eis que vem à tua liça mais uma carpideira. Choramingar-te que o mundo devia ser assim e não assado. Arre que o mundo é este paradoxo, torto que nem arame e de nada valeria esconjurar sobre o amarelo do jasmim. Sábia abelha que lhe medra o favo e drena dela o doce mel. O quanto de fatalidade há nisso? Haja um terabyte de caminhos desavindos para o empobrecido arbítrio do Ser que, existencial para caramba, lhe sobrarão esses ares de soba. Pois que bem-vinda, ó carpideira, teus óculos já não esconderem tão caudalosa lágrima. E, de soberba, cinzelarás palavras como armas de arremesso. O fel com que olhas em torno. O quanto sei os teus ais, ó carpideira. Travesti que és, meu pequeno vampiro. Vieste jovem, que nem um pajem. Vieste virgem, mas já leiloando o cabaço. Vieste tardia ao Carnaval e já és porta-bandeira, para o desgosto das lambisgóias, nereidas e janeiras. Não fosse esta a terra das oportunidades. Palavra que ainda não estou a gozar. E tu? Das oportunidades, com certeza. Mas saúdo-te, pois, mal ou bem…vieste!



(O trânsito flui pela avenida marginal. Ponho os binóculos sobre a rotunda do Monumento às Vítimas do Desastre da Assistência. Presumo ver, recuando no tempo, a dantesca cena do desastre. Agora a marginal está recortada de novos prédios, alguns até tapam o Palácio do Governo. Outrora, os esfomeados ajuntavam-se ali para a sopa do dia. Agora, com as luzes acesas, vê-se quão linda a nossa baia. A maldição desta cidade, adivinhem-na que dou um doce. Um bando de aves marinhas parte para a linha do horizonte. No rádio do automóvel, um samba insiste que o nosso amor é gostoso demais. Sou mais cronista que munícipe. Mais munícipe que crédulo. Um duende eu. Vejo as pessoas no jogging. É o que dá estarmos afoitos ao fim da tarde. Os deuses devem estar loucos. E os homens também…)