(O novo-riquismo festejara o reveillon em borbulhas de champanhe no promontório das excrescências. Políticos, advogados, comerciantes, traficantes e meretrizes saracoteavam corpos, suores e perfumes ao som do Ring My Bell, enquanto a plebe, à distância, salivava a fome dos frutos do mar e sonhava com a orgia dos leitões. Ciciavas-me aos ouvidos este conto em como Sodoma e Gomorra foram o esboço da cidade, nada mais)
00:45
Tacteante, meio querendo, começa 2010. Chucho Valdez toca piano no monitor do meu portátil. É uma melodia eclética que Fernando Trueba escreve ser latin jazz. Creio que é apenas arte na sua dimensão mais sublime. O piano é percussão que bate na alma. E é este novo ano, a entrar, nas suas primeiras horas e em acordes imperceptíveis, enquanto ainda dorme o meu filho. Da janela, o dia mal começa. Divisa-se, para além da neblina, uma cidade por acordar. Revisito-a pelos telhados, com antenas de televisão, e adivinho-a pelos esparsos automóveis na avenida longínqua. Há galos que cantam para quebrar o cosmopolitismo. É melancolia a destemperar a monotonia, diria. Começa 2010 e estou em vigília. Estou mineral e desperto, como diria um grande poeta…
1:10
Chucho Valdez ataca agora um minuete e rio-me da revolta dos músicos no filme “Ensaio de Orquestra”, de Frederico Fellini. Vi-o de novo ao divisar dos anos, dir-se-ia Deus a querer que eu desse uma sonora gargalhada ao madrugar em 2010. Prometo, a mim próprio e ao mundo (ao pequeno mundo que me volteia, note-se), ser este novo ano tempo de melhor escrita e de arranque mais a sério com a canga literária aqui ao lombo. Cada cristão a sua sina e, sendo meu destino o rearmar palavras, saberei, humilde que sou, cumprir o desatino. Tenho, na ânfora da metáfora, liquefeitos versos e, no repartível pão, côdeas de prosa. Guardo-os para o banquete da vida que nasceu, vaticínio também de um grande poeta, amigo ora falecido…
1:23
Será um ano de banhos em cachoeira. Vou tomá-los ao Brasil, país hidratante e sábio, onde gorjeiam mil pássaros. Tenho encontro marcado com os meus amigos da Sexta Literária e do Clube do Bode, em Fortaleza. Levo retroactivos abraços para o poeta Dimas Macedo. Devo visita a Maranhão, onde me aguarda a professora Rute e a sua tese sobre Mensagem, de Fernando Pessoa. Falando nisso, devo também à professora Simone Caputo Gomes um reaparecimento em São Paulo, tal como à professora Nazareth Barros uma conversa literária em Belo Horizonte, ocasião para rever a Márcia, que não sei se índia ou hindu, não para lhe atazanar o doutoramento, mas para descortinar com ela o facto de o santo ser de barro.
6:18
Desta janela, vejo um jovem casal que sai do automóvel e caminha para o prédio onde moro. Ela está descalça, com os sapatos na mão, e esvoaçam-lhe os cabelos. E ele, visivelmente bêbado, tem o fato pendurado aos ombros e leva, numa das mãos, uma garrafa de cerveja ao meio. Como um voyeur, perscruto-os com os binóculos e reparo que caminham, ensonados e trôpegos, de regresso de uma festa. Terão estado no promontório da excrescência? Ou terão ido à tenda dos milagres? Imagino-os, ontem, a dançarem apertados e sequiosos da vida, apartados do cansaço com que hoje todavia regressam.
7:00
Fora ontem, na esplanada. Conversávamos sobre o inferno astral de Nero e de Calígula. De como era temerária a lucidez face ao poder. Ou tão simplesmente ao que transbordava dos homens com poder. A segunda morte de Cristo terá sido quando seus seguidores deixaram as catacumbas para engrossar o poder de Roma. Sábio Constantino que fez Pedro erguer sua igreja e doravante insidiosa passou o ementar seu nome. De quando, de mãos dadas contigo, deambulámos a Via del Fiori Imperiali até ao Coliseu e fomos, pelas noites, atirar moedas ao Fontenário de Trevi. Só o amor vale a pena e ai de quem, de tal premissa, duvide.
(O DJ ainda lidava com Ring My Bell, quando ele, com uma palhinha cortada ao meio nasalava uma linha de cocaína. Aproveitou-se para urinar no lavatório e limpar as narinas, vistas ao espelho, com papel higiénico. Depois saiu para beber o seu uísque e discutir com a malta o segundo compacto do Millenniun. Era o charme discreto do novo-riquismo)