domingo, maio 30, 2010

Gaivota


Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.


Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.


Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.


Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.


Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.


Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O' Neill

sábado, maio 29, 2010

Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos


Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, maio 26, 2010

Psicotecelagem da vida quotidiana

Se não tiro das ideias
A singela tecelã...
Oh, tão bela tecelã,
Teça as bordas da manhã
Teça as bordas feito teias,
Feito veias, feito lã.
Se não tiro das ideias
A singela tecelã
Algum motivo deve haver?
Ouvi dizer que deve haver.

Thiago Ponce de Moraes

sexta-feira, maio 21, 2010

Quanto desconjunto


Escrever sangrando

Sangra sim, mas sem dramas, coisa e tal, escrever de pulso aberto. Fazê-lo à pauta alheia era recusar os quanta, as partículas que se entrecruzam nos campos da realidade e da ficção. Os campos mesclam-se. E o gozo de escrever está nos experimentos. Os encastelados da escrita não vão gostar destes exercícios, mas está-se nas tintas e numa idade em que arrepiar os ensebados da pequeníssima burguesia (e seus lacaios, alguns com ares, aros e eros modernaços), só mima o ego de quem já criou barriga e reequilibra a sua diástole que se arma aos píncaros. O gozo de escrever coisas não lineares; as linhas que não se acabam aqui nem ali. Se calhar, até descambam, como as paralelas, para o infinito. O gozo de poder escrever à velha maneira – na mesma forma de rima e métrica -, mas escolher dar a volta ao verbo e fazê-lo ressurgir na improvável esquina. Com a semântica desconstruída. Não por desleixo de ofício. É que a própria metáfora está no círculo vicioso e viciante dos poetas de serviço. Mudar de rumo, pois. Escrever de pulso aberto. E o resto é sangue…

Topónimos de nós

Não acredito em destino. Tão pouco existem, no meu pensamento, céu e inferno. A minha crença se resume ao milho que (não) cresce. Crença estranha para quem se sente urbano. Cosmopolita. Contra o pensamento vernacular, formatado por doutores e sustentado pela elite do café, quando o pensamento tende a lúdico e emancipado. Olho em torno. Afoito a rir dos deuses locais. A lhes provocar a ira. A ira dos nossos deuses locais. Mas, cá entre nós que não desdenho das uvas por estarem verdes, acredito antes não ser possível fugir dos topónimos de nós. Na física moderna, as partículas aceitam informações excludentes, por estas também serem concomitantemente verdadeiras. Estamos contidos no nome que nos deram. Topónimos, diria…

Livro Branco das Políticas Públicas

Como qualquer em edifício, começa-se pelos alicerces. Isso de construir a casa de cima para baixo, possível hoje em certa geometria, não entra pelas nossas contas. O afrontamento do momento (acreditamos): levantar os passivos e os activos culturais de Cabo Verde. Mapeá-los. Formular, a partir dos dados obtidos, a cartografia cultural cabo-verdiana. E, estando as evidências sobre a mesa, formular então novas políticas públicas para a Cultura. O resto é ousar, campo, aliás, pródigo dos artistas e criadores. O Estado aqui fica de fora. Se dentro, como facilitador e regulador. Para o resguardo da nossa cidadania cultural…

terça-feira, maio 18, 2010

o pauloleminski

o pauloleminski

é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique

Paulo Leminski

quinta-feira, maio 13, 2010

Calmaria

Toda essa vontade viciante

Que não espera amanhecer
É tudo indício, é quase um gesto,
Um jeito da vida dizer
Que daqui pra frente vai ser eu e você
E todo esse caos rubro que anuncia -
Trânsito, ponte, Sé e Barra Funda -
Não é maior que meu desejo de calmaria
Noite e dia, noite e dia
Nada melhor do que acordar
E poder te dizer bom dia.

Leo Curcino

quarta-feira, maio 12, 2010

Não há estátua que preste na minha cidade

Para Léo Ferre, em saudação a todos os anarcos-surrealistas


Quando um homem pega numa fruta e a leva à boca
Há sempre um polícia que diz “alto aí! pois essa é do patrão”
O malefício de algumas víboras é mesmo isso:
Fuzilam-te com o olho direito.

Mas a desgraça não pára aqui:
Sempre que um homem tenta dizer uma certa palavra
Morre enquanto pronuncia a letra A
(uma bomba explode no meio do alfabeto).

E porque não havia de ser assim
Se o mínimo que de uma barata se ouve dizer num parlamento
É que ela vai ser a cantora eleita?

Por isso continuo a jurar que de todos os músicos
Prefiro aquele que se senta ao piano e diz que é surdo.

E quando me dão a escolher entre um cavalo e uma bicicleta
Fecho os olhos e escolho um caracol.
E depois, como não sei que fazer desse animal,
Fico parvo a olhar para ele.

Pois é: um caracol (assim como um soneto)
Será sempre uma máquina estupidamente lenta
No meio d’automóveis que dão tantos à hora.

O olhar de Deus contempla a minha cidade.
Porém, não há estátua que preste na minha cidade


Arménio Vieira

domingo, maio 09, 2010

Caminho do vento

No álgido leito de sozinho, permito-me falar para as paredes, rir dos relampejos antigos e chorar das enigmáticas angústias. Por aqui, quando batem seis horas no relógio da sala, são três horas. Fora do meu avô a dita máquina e ele, já na sua ida velhice, achava que só os suíços domavam o tempo. A dita era regulada ao tempo pela Rádio Suiça Internacional. Lembro-me de uns versos de Alexandre O’Neill: “Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?”. Não creio que mude. Quebrando quase o encanto, o leitorado revolve fazer das suas. Toca-me o telemóvel: Está lá, sim, eu próprio, o culpado das crónicas. Ser menos hermético? Ver isso da inversão do sujeito? Vossa senhoria é da associação dos consumidores? Eu devo ser maçónico. Toca-me de novo o bichinho: Tenha a bondade. O próprio de carne e osso. E, presumo, alma também. Quer mesmo o Pranchinha nas crónicas? Mas quem sou eu para determinar sim ou sopas? Na sala, o relógio perdido e retardado. Dizem que era um relógio de cucos…

quinta-feira, maio 06, 2010

Variando pelos versos de Neruda


1.

Sob os teus pés, deslizantes falhas tectónicas e flores (estas em papel de lustro) são - verdes, violetas, púrpuras e azuis – também todas as outras cores e ortofonias poéticas no calígrafo descaso dos murros. São mais do aqueles versos de Neruda. Falham-te, movediços, o morfológico dorso dos autocarros pela intensidade e seus ruídos de música com que as novas tribos - avatares urbanos - conquistam o espaço das estações…Tudo sideral, mesmo nas falhas, tudo a fenecer na lógica do medo e do pânico, flor marginal que acontece na berma, terreno baldio, estio urbaníssimo, tudo cidade…
2.

Estive com o meu filho na Praça do Papa. A apreender muito. Tanto. Antes, estivera numa palestra e não me detivera na maneira pouco caprichosa da transmissão das informações e dos conceitos. Preferi sair. Ao ar da rua. À aprendizagem das esquinas. Buscar o conhecimento (a sabedoria) com o propósito de mais enriquecimento psicológico. Lembro-me de um livro primordial de Lani Guinier: “A Tirania da Maioria”. Esta assumia ter apreendido o essencial da democracia com os filhos a brincarem. A fixidez da árvore e a errância do rio fazem a ordem do cosmos, como te disse. Pensá-lo doutra forma seria o caos, a antítese do cosmos. Prefiro apreender a aprender, perdoem-me os doutos e sabichões…

quarta-feira, maio 05, 2010

Prophétie




où l'aventure garde les yeux clairs
là où les femmes rayonnent de langage
là où la mort est belle dans la main comme un oiseau
saison de lait
là où le souterrain cueille de sa propre génuflexion un luxe
de prunelles plus violent que des chenilles
là où la merveille agile fait flèche et feu de tout bois


là où la nuit vigoureuse saigne une vitesse de purs végétaux
là où les abeilles des étoiles piquent le ciel d'une ruche
plus ardente que la nuit
là où le bruit de mes talons remplit l'espace et lève
à rebours la face du temps
là où l'arc-en-ciel de ma parole est chargé d'unir demain
à l'espoir et l'infant à la reine,


d'avoir injurié mes maîtres mordu les soldats du sultan
d'avoir gémi dans le désert
d'avoir crié vers mes gardiens
d'avoir supplié les chacals et les hyènes pasteurs de caravanes


je regarde
la fumée se précipite en cheval sauvage sur le devant
de la scène ourle un instant la lave
de sa fragile queue de paon puis se déchirant
la chemise s'ouvre d'un coup la poitrine et
je la regarde en îles britanniques en îlots
en rochers déchiquetés se fondre
peu à peu dans la mer lucide de l'air
où baignent prophétiques
ma gueule
ma révolte
mon nom.




Aimé Césaire

segunda-feira, maio 03, 2010

Derivações

Heliofante: filho de um deus
chamado Sol. Gosta do arco-íris
e do girassol. Quando fode,
é por foder. Nunca come.
Para quê? Basta um raio
para lhe carregar a pilha.


Helifante: tem um hélice na cauda,
e caso quisesse poderia voar.
Mas não. Cada um é o que é:
o condor sente-se feliz lá em cima,
porém o sapo coaxa contente no charco.


Leofante: tem o seu quê de leão,
mas não quer ser rei. Às vezes
sente raiva e um nó na garganta.
Porém controla-se e vai embora.


Olifante: tem chifres enormes,
mas é mole de pila. Dão-lhe
com os pés as damas, mas ele
não se zanga, pois sabe
que o amor para durar
só pode ser o amor
de que falava Platão.


Polifonte: não tem pátria, por opção.
Tanto se lhe dá que faça sol
ou caia neve, nada o aquece
ou arrefece. Até gosta de Pasárgada,
que, entre outras coisas,
é o melhor sítio do mundo
para se andar de burro.


Plurifante, Mitofante, Necrofante,
Ornifante, Putifante, Androfante,
Fenolofante e assim por diante.

Elefante não, porque já existe.

Arménio Vieira