segunda-feira, janeiro 10, 2011

Impossibilidade de se estar noutra alma

(Não ficarei em silêncio, porque me é totalmente impossível estar noutra alma. Estávamos a almoçar no Hotel Porto Grande e me recordaste ter sido sempre um «pássaro turbulento». Eu também quis que te lembrasses da primeira tertúlia e falavas, já ao tempo, da exegese para a literatura cabo-verdiana. Creio que aquele tempo fora, de alguma forma, pródigo e marcante. Nenhum silêncio é igual ao outro. Mas, acredita, estarmos sempre juntos. Para além do gentílico de sermos cabo-verdianos, a caboverdianidade que nos detém)



Me_xendo no Baú

O reencontro com Luís Geraldes, artista plástico português, radicado na Austrália, foi uma festa. Em como a poética acasala-se com a plástica. Em como as nossas energias plasmam-se para a explosão cósmica e ontológica, deixando cair no terreno da Arte a poeira existencial das nossas vidas. Em como no cruzar dos nossos tempos, cruzam-se também os nossos olhares, os nossos afectos, as nossas sinas, as nossas misérias e as nossas exuberâncias. Em como eu, de pasmo e de admirado, olho para os quadros de Luís Geraldes. Em como ele, de calado e de mirado, escuta os versos meus que, com hífenes pelo meio, lhe emprestam viagens labirínticas. O projecto chama-se «Me_xendo no Baú. Vasculhando o U», envolvendo a dramaturgia e a recitação de João Branco e Nancy Vieira, e requerendo, em surpresa, que os versos (sem música aparente, mas ulterior, desse U a vasculhar, diria) sejam dançados por um corpo. Reptiliano corpo atomizado pela alma…

Costa do Marfim

Há leituras diferentes sobre os actos da política externa cabo-verdiana. Ainda que se deseje uma convergência e um sentido de «mainstream» na diplomacia, é salutar que haja visões diferentes. Sem crise. Aplaude-se a tentativa ao mais alto nível da diplomacia cabo-verdiana em participar da paz e da estabilidade na Costa do Marfim. O esforço do Presidente da República merece o aplauso daqueles que se apercebem dos alcances visíveis e invisíveis da política externa e da «missão estratégica» de cada acto em relação à sub-região da África Ocidental. Para além dos resultados «plausíveis» da missão, reafirma-se com ela um Cabo Verde como «país útil» (e necessário) na arena internacional e não mera caixa de ressonância e/ou base logística para as diplomacias de ponta a ponta. Tal como outrora, ao Cabo Verde que já desempenhou um papel relevante na resolução e manutenção da Paz na África Austral, agora é-lhe crucial o protagonismo nesta sub-região em que apenas uma análise estrutural avulsa não reconhece a sua importância. Lá voltaríamos aos olhares sobre os moinhos, bem à maneira de Cervantes: Alonjo Quijano, Dom Quixote de la Mancha, via-os como monstros, mas Sancho Pança, deles, só descortinava os moedores de cereal. Saibamos nestas antípodas dos olhares, fazer as nossas leituras…

Frio de Lisboa

Frio de Lisboa, calafrio de estar longe, enquanto um monstro, pior que a cabala, tenta engolir alguém que me é próximo. Este monstro – chamemo-lo pelo nome – é a Justiça, em paragens nossas, mais meretriz que senhora, vendendo-se pelas margens e conspirando-se pela calada, como se as virtudes deixassem, entre nós, de já fazer sentido. O Governo faz reformas, investe em mudanças e agiliza circuitos, mas o corpo permanece corrupto, podre e ao serviço da besta. É o corpo delito, de um delito maior e transbordante. E o terrível disto tudo seria ficarmos quedos, quietos e a medo, incapazes de cidadania e presos por um fio pelo embaraço de falarmos as duras verdades à cara dos senhores da toga. A que isso terá chegado! A quantas vai a tolerância do cidadão em relação à ignominia!

Em campanha

Passando estes tempos, haverá um País que continua. O pessoal prepara-se para uma campanha pobre em ideias, mas rica em cartazes gigantes e em carros de som. Os ideólogos dão lugar aos publicitários e as plataformas eleitorais são trocadas por camisolas coloridas. O importante não será a escolha consciente, mas o voto cabresto – umas vezes, por engano, outras vezes, por engodo, quase sempre, por propaganda. Agora me lembrei daquele amigo, anarquista até dizer chega, que rezava nestes termos: se o voto é a arma do povo, é preciso não votar para que o povo não fique desarmado. Eu já não penso assim. Voto sim. Mais Cabo Verde. Não me conformo com a «coisificação» de certas estratégias. Nem fico neutro à queda de braços entre uns e outros. Cidadão, sei o que (não) quero…

(Ser-se cabo-verdiano é uma condição além da gentílica (e quem o é, sabe que tenho toda a razão). Direi, por isso, com todos os efes-e-erres que não é fácil ter pele do outro, quando nos seria totalmente impossível estar-se noutra alma)