Assim na arte, como na vida e é, a partir desta premissa, o modo com que me induzo a biografar Mayra Andrade. Ela, na arte, ganha a Medalha de Ouro nos Jogos da Francofonia, no Canadá, entre 35 concorrentes, sob o signo da música “Lua”. Tinha, na vida, apenas, 16 anos nesse pródigo ano de 2001. Já na arte, e porque nada é acaso, o músico Paulino Vieira já teria formulado, em pensamento, o que viria a dizer a Mayra Andrade: “Quando uma música está destinada a ser tua, vem ter contigo e não se vai embora.” E, quiçá, antevendo esse vaticínio, nasceria ela em Cuba, terra da Nova Trova, em 1985.
Mas será pela alteridade entre a arte e a vida o alarde que me motiva a escrever, sob pedido, a biografia de Mayra Andrade? Ou será que o faço, porque na fímbria de a descrever, navegarei também pelas s/cem margens de uma nação crioula, a mais ancestral de todas, onde nasce a Morna, a Coladera, o Funaná e o Batuque, entre os vários géneros musicais que vão fazendo, a seu tempo, o périplo (e o azimute) de Mayra Andrade? Ou, então, porque, livre das amarras que a vida e a arte por vezes determinam, ela assumiria que “Mais do que uma cantora de Cabo Verde sou, acima de tudo, uma cantora. A música sempre fez parte de mim. Se me apetecer misturar músicas cabo-verdianas com outros sons e influências, acredito que posso fazê-lo.”?
De uma coisa, estou certo: se tivesse que declinar as minhas preferências por dois ou três nomes da música cabo-verdiana actual, eu não teria dúvida de incluir entre eles o nome da artista Mayra Andrade. Também estou ciente de que não ficará aqui grafado tudo o que sei e pressinto de Mayra Andrade. A maior parte ficará dentro de mim em desfocagem com que se misturam nela a arte e a vida. De resto, biografar é retrato que se sujeita ao maneirismo da memória.
Por conseguinte, ela tem apenas dois álbuns, ambos de elevada ressonância, “Navega” e “Stória Stória”. “Navega”, porque ela própria é andarilha do mundo. É que as latitudes e as longitudes se podem resumir a um ponto existencial, ao fim e ao cabo. E “Stória Stória”, porque, pela rara voz e inequívoca beleza, pode ela aquietar os nossos espíritos com o dom de Sherazade. “Algumas das músicas têm algo de introspectivo”, diz, no pressuposto de que só se dá o que se tem. No consciente. E no não consciente…
Vive, desde 2003, em Paris, Cidade Luz. Para ela, Cidade Mundo. Mas também síntese de suas andanças de infância e adolescência pelo Senegal, Angola, Alemanha e Cabo Verde. Para não dizer corolário de vivências pelas músicas brasileiras, americanas, cubanas, francesas. Pelas inumeráveis músicas do mundo. Paris é a sua Estrada de Damasco para o mundo. Para a sua visão holística do mundo.
Em consequência, vence o prémio BBC Radio 3 World Music na categoria Revelação. O calendário diz que é o ano de 2008. É que a menina estrela do Satellit Café, de Paris, anos antes, gravara já, em momentos diversos e dispersos, com Charles Aznavour, Chico Buarque, Lenine, Mário Lúcio, Paulo Flores, Teófilo Chantre e Mariana Aydar. Na arte, era filha dilecta de Orlando Pantera e dele continua (em sereno gesto) inclusive no interpretar alguns dos maiores compositores de Cabo Verde: Princesito, Betú, Cacá Barbosa, Kim Alves e Tcheka Andrade e Daniel Spencer, para só nomear alguns. Na vida, Mayra Andrade é filha de Cabo Verde. É filha dos novos mundos que o cabo-verdiano criou, como rezaria sobre nossa identidade o poeta Gabriel Mariano.
A produção cultural de Mayra Andrade, que transita pelos domínios da música do mundo, abrange já uma gama considerável de perspectivas vivenciais e paisagísticas, com um enfoque predominantemente acentuado para o resgate da música cabo-verdiana. O que dizer desta intérprete e compositora de fulguração artística lastrada em múltiplas perspectivas? É sintomático nas suas composições o tropismo crioulo (linguístico e cultural) que se abre à assonância das sonoridades globais e das escalas improváveis. Sussurros de um liame cósmico…
A música de Mayra Andrade, tal uma lua cambiante e “cambante”, no sentir de Princesito, é feita de intimidade e de alacridade. São sonoridades e fragmentos que apontam para as formas inefáveis do confronto e da premonição. A tópica da lua: nova, cheia, quarto crescente e quarto minguante. As fases da lua, em nós - solidão, devaneios, conflitos, confrontações, ritos de passagem, sensações plurais em combustão, dores e alegrias, que se querem maduram. Mayra Andrade é, assim, toda a lunação. Assim na arte, como na vida…