«A tentação tamborilava do corpo da terra/ Para o ventre do homem».
Daniel Medina
Não pude escapar ao desafio de prefaciar este livro de Daniel Medina, alegando, de pronto diante do convite, que eu me dedicava ao ardor de criar a Pöesis e não propriamente ao labor de esmiuçar a criatura poética.
Nem tive engenho e arte para convencer o Poeta desta belíssima partitura que talvez outro desta praça crioula prefaciasse, com mais ciência e propriedade, o compósito das suas metáforas.
Vencido, mas não convencido do risco de vasculhar este livro, pus-me à procura do fio de Ariadne com que pudesse sair de assaz labirinto, posto que, do engodo da beleza, fui entrando pelo engano das palavras e ora estou cada vez mais entranhado pela “tentação que tamborilava do corpo da terra”.
Aquiescendo-me à arte dos sentidos, voltei a reler a imprescindível verve de Corsino Fortes, a ver se, para além do tributo que lhe presta Daniel Medina, descobriria nestes versos a pantagruélica prova de sua antropofagia poética.
O amanho, astúcia de quem neste livro escreve, regista a referente poética pelos signos seguintes: Mãe, terra, húmus, semente, ventre, seiva, sémen, parto, vida, árvore e tambor.
Regista-o também num jogo de sintaxe em que o verbo, signo da génese, se substantiva a cada página e recusa, autonomizando-se da lógica do telúrico, ser realista e cartesiano. Regista-o ainda na transposição, senão mesmo na subversão, da semântica, desconstruindo bíblicos sintagmas, quais sejam:
(…)
Maçãs e outras serpentes (!) a descarnarem
Fugitivamente enfeitadas
De machos e fêmeas
Em noites grávidas de mil carnavais
(…)
O antanho, de tudo afinal ser ontológico, quando posto em compostura, travestiu-me para olhar o onírico touro de Arménio Vieira no feitiço deste autor a “emprenhar som e fantasia” nos seus versos.
Onde pressentira eu isto? Porventura na poética de Corsino Fortes, mas o vate do criador de “Recode pa Humbertona” ou de “Não há fonte que não beba na fronte desse homem”, ainda que assim contrito, me parece muito mais contido. Quiçá na tecitura, de recitara existencial, plasmada nos coevos exemplos de João Vário.
De onde provinha esta aventura que, de remota mnemónica, me remetera ao épico de Gabriel Mariano, pingando das suas torneiras entranhadas a voz dos mortos ultrajados?
Haverá paralelo, quase simbiótico diria, entre as estrofes de “Capitão Ambrósio” e este perfilar apócrifo em que:
(…)
Da necessidade
O engenho Emanava
Nas mãos libertas Descobrindo
Nos olhares sagazes
Astúcias
Registadas Experiências
Descobertas
Desenhando
Palmo a palmo
Sonhos e medos
Lonjuras e domínios.
(…)
Eureka! Longitudinalmente, passeando por estes imprescindíveis poetas, a imagem de Corsino Fortes se reformatava. Era preciso desfragmentar assaz visão. Recompô-la para o disforme do verbo de tal fonte e seu fonema. A cabeça calva de Deus. Ora, vejamos-se:
(…)
Na continuidade do poema
Que a terra havido criado
E colocado por momentos
Na palma da sua mão
Sulcada de esotéricas fantasias
(…)
Será mão de Deus da calva cabeça a sulcada de esotéricas fantasias? Sendo ou não sendo, a questão deste livro, original no pastiche que assume e canibal no devorar as criaturas, inscreve um texto singular, na continuidade do poema que nasce do antanho e não desagua em estuário proposto e cumprido na orla dos deuses.
Bem alertara a Daniel Medina que buscasse outro, mais afoito à crença no pão da manhã, mas, como quebrar a resiliência de quem persegue a luz de konde plamanhã manchê?
Bem quisera que outro, buscando o mundo, discorresse mais neste prefácio sobre um novo poema, de largada pós moderna, mas que não nos sonega este remoer, visto “Tanha morrê na bandera de porta/C´se fome de maçã travessode na boca”.
E quanto à antropofagia poética acima porfiada e confirmada, voyeur que sou de coisa alheia e serpenteado de fome travessode na boca, palavra que não darei mais detalhes ao leitor. O livro começa nestes termos “A vida tem sido uma aventura”.
Entre, pois, o leitor também neste labirinto. E, antes que me esqueça: os desenhos (chaves de algum enigma?) são do autor…
Praia, 28 de Janeiro de 2010
Filinto Elísio