Baixinho, quase em segredo
Baixinho, quase em segredo, não vá a cidade malfadar esta mania, mas gosto de falar sozinho. Quando estou só chego a declamar odes e epopeias. Se não aparecer vivalma até faço discurso sobre o estado da Nação. Sei que o pessoal toma tal excentricidade como coisa de maluco e, algum mais generoso (porque, vasculhado, se encontra) como coisa de poeta. Ultimamente, dizem que é do aproximar das eleições, certos vigilantes espalham-se pelos bares, esplanadas, restaurantes, locais de trabalho e prédios de moradia, a tentar identificar os que falam sozinho. Os que falam só, contrariamente aos que só falam, são um perigo para a nossa jovem democracia, dizem. Tais vigilantes não se deixam emocionar pelas prerrogativas da loucura ou da poesia. Vou ter de tomar uma providência…
Sem algum porém
Ele parece mesmo uma tartaruga ou uma baleia: animais em vias de extinção. Quem souber das suas coordenadas, corra logo a notificar a imprensa. O denunciante terá direito a ser entrevistado no telejornal e outras mordomias da classe dirigente. Vejo-o, mas fico calado. Proteger as espécies é jogar limpo com a existência. E o garção pergunta quer mais do mais ou mais do menos e eu, um tanto deliciado, cá para mim que ele me sugestionava os versos de Arnaldo Antunes, respondo queria mais desse menos e, no dizendo, fazendo, me foi servido mais uma taça de vinho tinto.
No que acontece lá fora
Lá fora, a noite se esboçando. Cá dentro (em como me lamento), o fado de uma saudade. Os versos que balbucio: Cupido não divulga quando vem. Nem quando não vem, penso, logo existo. O poema, entretanto, está parado. Estagnado da silva. Como a rua, de repente, parada diante do semáforo vermelho. Ou, então, à hora cambaleante. Um engarrafamento não chega a ser romântico. Mas tu acharias que sim? Temos cidade! Olho pela janela: a rua. Lá fora, mais ao alto, a lua. Cá dentro (no quarto do meu pensamento), mulher nua que me arrebata…