Passaporte de Poeta
No guichet que dá para a sala do embarque internacional, os agentes da Polícia de Fronteira, verificam os passaportes. Alguém, ao nosso lado, assobia “Imagine”, de John Lennon. Assobio sintomático. Será que ele imaginaria se todos portassem o passaporte de poeta? O mundo sem os outros muros de Berlim, mais insidiosos e invisíveis, agravado de cercos intangíveis, para as nossas grilhetas recauchutadas? Aprende-se, aos poucos, que as fronteiras não são a panaceia da soberania, nem franqueiam sociabilidades humanas, mas instalam-se como limites impostos ao Homem para o (não) exercício (ou claro condicionamento) das suas liberdades. Ir para além dos territórios, circunstancialmente marcados pelos princípios e interesses de uns, mas não necessariamente de outros, é o que nos motiva para o desejo visceral da poesia. A metáfora que rompe os limites e se apropria da geografia, ocupando a terra como um só corpo, nos configura filosoficamente como a mais suprema liberdade. Mesmo que estejamos parados no lugar, quedos ao tempo como um zero que se alucina aos outros números, seja sempre o nosso pensamento esta coisa desmedida e libertária. Voar na ideia e no desejo, anti-síndrome de Medeia que, por esquizofrénica, nos balançaria o espírito, para além do improvável que reduziria as fronteiras a pó. Assim, entendidos, tenham a bondade, de verificar o nosso passaporte. Pode não estar aí firmado (preto no branco), mas somos poetas…
Ritual xamânico da poesia
Já imaginaram um ritual xamânico da poesia? É mais ou menos assim: um sol a pôr-se, um rio que não acaba e um perfume intenso de planta. O elogio do fruto bendito no seio da terra. Lá longe, o resto do mundo. Ler poemas de José Luís Tavares, de Manoel de Barros, de Márcio-André ou de Pedro Tamen, ao coro dos indígenas amazónicos a cada versejo? O realejo do batuque, como os trovadores de beira-rio, também eles querendo metaforizar as cantigas de Santiago? Pois bem, sermos delirantes ao sabor da floresta e ao farfalhar das águas, afluentes do grande rio, é parar um pouco e pensar o mundo em parte e no todo. Sermos delirantes, assim ao calor dos afectos e dos afagos de línguas que se diferem, mas em linguagens (gestuais, muitas delas) que se abraçam. Sermos apartados das realidades que levávamos, como se estas, por aplacadas e limitadas, nos permitissem o gozo de um simples piar do pássaro turbulento. Já pensaram o que é tocar a relva e sentir o rente de como pulsa o planeta, corpo vivo, activo e premente, nosso afinal por não sermos mais que natureza? Um colibri corta o ar e, em nosso pensamento (ou será sentimento?), faz que também canta. Que ritual, minha gente!
Prémio Camões
Isto já começa a ser bonito: Prémio Camões 2010 para Ferreira Gular. No ano passado, fora Arménio Viera. Para o gáudio colectivo. Poetas nossos. Dançávamos, agora, o NPG (nosso passo gostoso, não mais), celebrando o feito. Ao sabor do Poema Sujo. Ou daquela música que retrata o rio Congo. Em Salimp, salão do livro de Imperatriz no Maranhão, falámos a África e a necessidade de prosseguirmos a plena libertação mental. Contra o “mental slavery”, cantado por Bob Marley, em Redemption Song. O movimento vai para além da questão dos africanos para se radicar numa convergência mais integral e que emanciparia todo o ser humano. A interculturalidade, o ambiente, a economia justa e solidária, a estética e a ética da alma e do corpo, o respeito por todas as formas de amor, deverão emergir como políticas públicas globais. Bem que Edgar Morin, radicalizando a sua teoria sobre os conhecimentos (que já são mais de sete, mas infinitos), prognosticava a Poesia como a próxima linha. A percepção criativa como uma outra metodologia de perspectivar a vida. O olhar ecológico, radicalmente ecológico sobre todas as coisas. Isto já começa a ser bonito. Gular escrevera que você é mais linda que a Baia da Guanabara ao entardecer. Parece ser verdade…