Sequestro existencial
Dois livros me encantaram pela desmistificação do poder dos homens e pela essencialidade humana - «Os Sequestrados de Altona», drama de Jean-Paul Sartre, e «Ninguém Escreve ao Coronel», romance de Gabriel Garcia Marquez. Ambos radicalizam a forma como os homens (não) sabem ser e estar diante do poder (político, económico, social, religioso, outro). A metáfora da miséria orgulhosa do Coronel é paradigma dos homens em face ao destino. Diante do calvário de nascermos iguais e da democraticidade de morrermos todos, o intervalo em que vivemos é de si uma dialéctica no olhar dos outros. E no nosso olhar ao próprio espelho. Em verdade, somos sequestrados da vida, na sua luz e sombra. E em tese, ninguém é diabo ou santo. Todos somos (tão frágeis) dramaticamente humanos. Com o vosso perdão por este intróito de anti-História. Ou apenas este rasgo de estórias que vão compondo a História. Ou, ainda, vice-versa…
Valorizando a História
Faz bem ler pela madrugada, quando já anda tudo a dormir. Faz bem, esquecido das horas e das desoras, remoer páginas inteiras no barulho monocórdico de um relógio. Petit bruit, como diria alguém que me sussurra o espírito. Remoer livros. Por estes dias, tenho estado a ler um livro de Laurentino Gomes. Intitula-se «1822» e conta estórias de um período muito especial da História do Brasil. Talvez por ter contado estórias, o livro se tornou num best-seller. Tornando coloquial, senão mesmo banal, feitos que afinal nem foram factos e criando interesse por figuras que a oficialidade às vezes recusa, a obra de Laurentino Gomes marca o seu espaço editorial pela linguagem discursiva e pelo fino, quase imperceptível, recorte humorístico. Pessoalmente, o texto prende a minha atenção pelos detalhes da época (século XIX, no caso), algo que também captei na releitura de «O Senhor das Ilhas», de Isabel Barreno, e de «A Morte do Ouvidor, de Germano Almeida». Estes também contam estórias. Valorizando a História…
Máscaras dos outros
Li também, com vivo interesse, «Máscaras de Salazar», de Fernando Dacosta, e confesso que me fascinou saber o lado humano do ditador português. O homem que, por trás do sombrio e do retrógrado regime imposto a Portugal, soube ser casto e humilde, impondo-se a si próprio um viver sob valores do patriotismo e da família. Naturalmente que, em seus auspícios, floresceram a polícia política mais grosseira e a Concordata que lembrava à Inquisição, com perseguição de cidadãos e aberturas de prisões, de que o Campo de Concentração do Tarrafal é o mais gritante exemplo. Todavia, há também estórias com interesse para além da História, sendo esta, quase sempre, o karma dos contemporâneos. Com mais distanciamento, havemos de encarar António Oliveira Salazar com o desapego emocional (e, quem sabe, sem raiva) com que encaramos o Marquês de Pombal. Admirando-lhe a estátua, eixo distribuidor de Lisboa, encantadora cidade…
Antropomórfico tão-somente
Tudo isso me fez lembrar Lani Guinier, politóloga e autora do inultrapassável livro «Tirania da Maioria», algo que se recomenda à nossa política local. Ela recomendava, apesar de tudo, a releitura da História sem assomos da emoção, nem despiques ideológicos. Qual o encanto de passearmos pela Via del Fiori Imperiale e pararmos, deslumbrados, diante do Coliseu, se os Césares foram o piorio em termos de práticas humanas. Basta lembrarmos Nero e Calígula, entre tantos. Afinal, a figura do temível e sanguinário Napoleão Bonaparte, hoje valorizado pela França democrática, não teria o brilho toponímico e efeméride, nem contribuiria para engrandecer o País. Outrossim, Thomas Jefferson, à sombra do seu genial espírito libertário, foi senhor de escravos e Winston Churchill, símbolo da resistência ao nazismo galopante, era um colonialista de primeira e os colonizados do Império Britânico viviam sob a indignidade e servidão. Há que contar estórias para que a História se proceda, sem fatalismo, mas com o seu inexorável sentido antropomórfico, inclusive de ser o homem o lobo do homem…