Incendiário, eu? Creio que não, meu coração. Para mim (e neste momento), o pôr-do-sol é o incêndio já valendo a pena. Os seus tons de amarelo e vermelho; as suas nuances de violeta – tudo a esbater no anil do céu e na turquesa do mar. Faz-se, assim, o construto da minha emoção. E, compondo, em assaz linha, a paisagem (da janela da minha alma, pois claro), acrescentaria um pássaro deslizante a caminho do poente e recitaria (em balbucio mental) o poema “Cinzeiro”, de Jorge Barbosa.
Jantar “chez Nazareth”
Sentir-se quão frágil a vida. Frágil, contingente e “debole”. Por isso mesmo, bela. Luz afoita em seus apagares. Outros esgares que, podendo, sejam de amores. Noite de vela acesa e leve, crepitando, também frágil, sobre a corola dos falares. Diáfano aroma de cachaça mineira e de um canapé em flores e frutos. E, como também és bela, no que recusas de essencialismo e no que assumes de existencialismo. Sem aparato, apenas de sopro. Sem arquétipo, mas de corpo inteiro. Digo-te ser a curva mil vezes mais certa que a reta. Provam-na a errância, o retorno e o buraco negro. Provam-na a política turva que é também conversa, em ceia de pão, vinho e palavra. Quão frágil (e fugaz incenso de ópio) esta vida. E o bater das horas. Com chuva lá fora...
Sakineh Mohammadi Ashtiani
Uma mulher está em vias de ser apedrejada até à morte no Irão. Chama-se Sakineh Mohammadi Ashtiani. Posso ficar calado, aderir-me aos “animais de capoeira”, como descreve Armênio Vieira sobre os homens inertes? Posso fingir, pobre de mim, desconhecer a barbárie de um Estado Leviatã ou de um Anjo Exterminador que permitem apedrejar uma Mulher até à morte por (leviano talião) da Justiça? Posso, homem de brio humanitário, compactuar em mim com um regime da excrescência, onde o Poder prende, tortura e mata? Posso, para o sono dos justos, aceitar na minha simples fala o fanatismo diabólico de quem se arroga autoridade divina?
Pedaços Dele
A pena da morte, onde quer que seja ou esteja, é o maior atentado à Vida. Aos Direitos Universais. À Humanidade. Ela representa o avanço da barbárie sobre a civilização, merecendo a condenação dos homens e das mulheres de “boa vontade”. Não se trata aqui de condenar o Irão tout court. Trata-se de deplorar e de levantar a voz, por miúda e marginal, contra as execuções dos seres humanos, contra um atentado físico e mental extremo. Contra a dor física de matar e o sofrimento psicológico da morte anunciada. Contra o permitir o diabólico poder aos humanos para serem o Deus da Morte, ao invés de sagrados filhos do Deus Maior. Sem apedrejamento, nem forca. Sem cadeira elétrica, nem injeção letal. Sermos o cataclismo do Bom Deus. Sermos fragmentos e estilhaços. Cacos do seu Cálice em quebra. Pedaços Dele...