segunda-feira, novembro 22, 2010

Tempo, tempo, tempo, tempo (III)



Remanso

ter um livro para ler
e não o fazer

Fernando Pessoa

Aprende-se que ficar na rede (sem pensar em nada), nessa metafísica bastante e bem pessoana, é uma delícia. Balançar, mas ao de leve, não fosse o cronista, em desarranjo, transmutar o bulício da vida. O desassossego apenas e tão-somente de ouvir a morna “Mar Azul”, com Cesária Évora e Marisa Monte. Ao tempo dos alquimistas, o engenho e a arte eram uma só ciência. Tenhamos consciência disso. E o pensamento, como outrora, sendo afago do remanso. E, se tanto, de a voz, que será tua, a recitar uns versos de Adélia Prado. Uma delícia, carícia quase...

Cronista 

Está na cara que não é nada fácil a vida de cronista em Cabo Verde. Não deve ser fácil o metier em qualquer outra parte. O condicionamento dos outros. A alteridade em nós e nos outros. O caos das identidades. As transposições, as leituras transfronteiriças. Uns querem ler crónicas de “belas letras”, com floreios literários ou de novela, e nem sempre tenho pachorra para escritor. Outros demandam que afronte a vida política nacional e dê opinião sobre isto ou aquilo, este ou aquele, o que cada vez menos me anima. Quando não se espera de mim coisas mais estapafúrdias, como seu eu tivesse compromissos com a chatice do processo histórico. Não é raro sentir-me como uma arma de arremesso, karma dura e neurótica. E eu que apenas queria escrever, a cada momento, o desvão das minhas lembranças?

Património Imaterial

Cabo Verde, que tem na Cidade Velha um lugar classificado como Património Universal da Humanidade, poderá ter outros sítios com tal estatuto: o antigo Campo de Concentração do Tarrafal. Ou, então, a Cidade de São Filipe. Ou, ainda, a Baía do Porto Grande. Mas também poderia candidatar-se ao reconhecimento da Unesco com a Morna, o Batuque ou a Tabanka. Candidatar-se ao Património Imaterial da Humanidade, mais precisamente. Quem sabe, se com a secular técnica de feitura da aguardente de cana. Ou com as Bandeiras do Fogo. É tudo uma questão de atitude. E, sobretudo, da capacidade de argumentação sobre os valores excepcionais e diferenciais dessas manifestações culturais e de como se integrar a um selecto grupo de 232 monumentos “intangíveis”. Na semana passada, uma quarentena de actividades tradicionais ganhou o status de património da humanidade da Unesco, entre elas a acupunctura chinesa, o flamenco espanhol, a arte de domar falcões na Mongólia e a de produzir biscoitos de gengibre na Croácia. Chegou a hora de pensarmos em tudo isso...

Brasil – Cabo Verde

Leio (e recomendo) a leitura de “1822”, de Laurentino Gomes. As circunstâncias da Independência do Brasil remetem de alguma forma ao passado em Cabo Verde, nesse mesmo período. Entendendo esse recuo, entenderemos outras realidades que são nossas e que se desfiam, incógnitas, mas não anóminas, sob as nossas percepções. Em Cabo Verde, houve sim um movimento independentista de associação ao Brasil. Era uma parceria estratégica. O ethos foi sufocado, como foi aquele de Angola igualmente de associação ao Brasil. Quem sabe se, ora em tempo de parceria estratégica, não nos afronte a necessidade de complementar o arquipélago ao continente. Incontinente direi que há espaços que almejam o seu norte e há aqueles que precisam do seu sul. Sem desnorte para os nosso interesses nacionais...